Para preencher o vazio das tardes de Verão

PÚBLICO 2012-07-20 José Manuel Fernandes
Não há leituras de Verão. Há boas e más leituras. E as férias são sempre uma boa altura para regressar às boas leituras


Li Os Irmãos Karamazov numas férias de Verão, há mais de 40 anos, numa aldeia de pescadores chamada Porto Covo e que Rui Veloso ainda não tinha descoberto. Cem Anos de Solidão foi nas praias de Aljezur. A Casa dos Espíritos junto ao Guadiana, num local improvisado de campismo que o Alqueva submergiu. Já O Passado de uma Ilusão, de François Furet, acompanhou-me em Colares, no mesmo estio em que li As Pontes de Madison County. 

A lista podia continuar, longa e variada, recuar até ao tempo das aventuras de Os Cinco ou avançar até ao choque de As Benevolentes, mas a moral seria a mesma: as férias de Verão são sempre uma boa altura para colocar as leituras em dia - se é que isso é alguma vez possível - e tomarmos empreitadas que às vezes nos assustam noutros dias de mais afazeres. Verdade tanto maior quanto umas férias com livros são, em tempos de aperto, umas férias baratas. Aqui ficam algumas sugestões.

Começo por um livrinho que mal preenche uma tarde: Matemática em Portugal, Uma Questão de Educação, de Jorge Buescu. É o mais recente volume da colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos e é, também, uma pequena provocação que nos faz pensar. Partindo de uma pergunta pertinente - "por que é que Portugal nunca teve um único matemático de primeira grandeza", isto é, da craveira de Newton, de um Euler ou de Gauss -, o autor desmonta algumas ideias preconcebidas, explica o que é decisivo no ensino da Matemática e conclui que a resposta à sua pergunta está na debilidade histórica do ensino das ciências no nosso país. Pelo caminho mostra como o marquês de Pombal fez muito mais mal do que bem. Uma pequena delícia.

Continuando na área das ciências, mas a exigir outro fôlego, temos a mais recente obra de Edward O. Wilson, um dos mais influentes biólogos da actualidade, The Social Conquest of Earth, ainda não traduzida para português. Conhecido por ter proposto, na década de 1970, uma nova visão da evolução a que deu o nome de sociobiologia, E. O. Wilson procura, desta vez, responder a algumas questões eternas, como as de saber de onde vimos e para onde vamos. Para isso estabelece perturbantes paralelos entre a nossa espécie e o mundo dos insectos que estudou toda a vida, as formigas. As suas reflexões sobre como o que sabemos sobre a evolução das espécies pode influenciar o que somos em domínios como a linguagem, a arte ou a moral é quase sempre tão interessante como controversa. Aos 82 anos, Wilson continua a desafiar ideias feitas. 

Também ainda sem tradução para português temos Why Nations Fail, de Daron Acemoglu e James Robinson, dois académicos norte-americanos que regressam ao tema que preocupa os economistas desde Adam Smith, as razões para a riqueza e a pobreza das nações. A sua proposta é que a capacidade de gerar progresso através da inovação está indissociavelmente ligada ao tipo de instituições existentes: quando essas instituições são "extractivas" e se destinam a beneficiar os sectores que dispõem de rendas não-produtivas, as sociedades estiolam; já quando são "inclusivas" e asseguram a todos a possibilidade de inovarem e enriquecerem, as sociedades desenvolvem-se mais depressa. A tese tem, contudo, um ponto fraco: não clarifica como pode uma sociedade evoluir para ter instituições inclusivas, pelo que recomendo a leitura simultânea de Civilização, O Ocidente e os Outros, de Niall Ferguson, que nos propõe uma visão mais integrada. 

Por falar em instituições, uma das leituras recentes que mais me fascinaram foiThe End, a mais recente obra de Ian Kershaw, autor de uma monumental biografia de Hitler. Desta vez o historiador britânico procura responder a uma pergunta altamente perturbante: por que foi que os alemães se mantiveram fiéis ao Führeraté ao fim? Mais: como foi possível o Estado nacional-socialista manter-se a funcionar mesmo quando era impossível não ver a inevitabilidade da derrota? Esta não é por isso uma história militar do fim da Segunda Guerra na Europa, antes uma história de como a Alemanha funcionava e foi capaz de prolongar a resistência muito para lá do que imaginava razoável. Para os interessados neste período e que prefiram ler em português, há uma outra leitura obrigatória: Terra Sangrenta, a Europa entre Hitler e Estaline, de Timothy D. Snyder. A digestão nem sempre é fácil, mas é muito instrutivo ver até que níveis de barbárie organizada e politicamente assumida foram dois regimes determinados em moldar a Europa de acordo com as suas obsessões ideológicas. Mesmo quem julga que sabe tudo sobre o grau de inumanidade desses regimes ficará surpreendido com a investigação original de Snyder.

Já Esther Mucznik propõe-nos olhar para a barbárie europeia a partir de Portugal em Portugueses no Holocausto. É um levantamento a dois tempos. Por um lado, fala-se dos judeus de origem portuguesa que morreram nas câmaras de gás, idos da Holanda ou de Salónica. Por outro, fala-nos de portugueses que, como Aristides de Sousa Mendes, salvaram milhares de judeus. Em França, como na Hungria. Ou na Viena onde vivia Maria Adelaide de Bragança. Às vezes há constatações surpreendentes, como quando se avalia o comportamento do Portugal de Salazar no salvamento dos judeus e se verifica que não fica pior no retrato do que os outros países neutros ou os próprios aliados: "Nos EUA entraram apenas 21 mil judeus durante a guerra; em Portugal, apesar das restrições, entraram muitos mais". Ainda sobre Portugal nesse mesmo período, Lisboa 1939-1945, A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, de Neill Lochery, conta-nos a história, recorrendo amplamente aos arquivos diplomáticos britânicos, das intrigas de alemães e aliados e a forma como Salazar foi lidando com as duas partes do conflito. Tudo numa Lisboa pobre e provinciana a que os refugiados vieram dar um toque de exotismo que às vezes chocava com os costumes locais.

Quem não quiser esquecer os problemas do país pode angustiar-se, ou revoltar-se, com a leitura de Má Despesa Pública, de Bárbara Rosa e Rui Oliveira Marques, volume que parte do blogue onde os dois autores têm vindo a registar os muitos desmandos que, do Terreiro do Paço à mais remota autarquia local, têm sido alimentados com o dinheiro dos nossos impostos. O livro vai, contudo, mais longe do que o blogue, incluindo investigações novas e subtítulos tão apetitosos como "Metro do Mondego dava um filme", "Anda tudo ao telemóvel no Banco de Portugal?", "A herança do Euro 2004", "Um museu escondido", "Como trabalhar quatro horas na Câmara de Lisboa" ou "A CP gosta de dar música", entre muitos, muitos mais. Seria divertido se não fosse trágico. 

Por fim, para que fique um romance na lista, há Vida e Destino, de Vassili Grossman, que desde há uns meses conta com uma tradução portuguesa de qualidade, feita a partir do original russo. Grossman era jornalista e foi correspondente de guerra em frentes como as da Stalinegrado, Kursk ou Berlim e foi dessa experiência que partiu para esta obra, que é um dos mais importantes testemunhos literários sobre o que foi totalitarismo no século XX. Proibido durante décadas na URSS, o livro é uma impiedosa denúncia da "enorme submissão humana" que regimes como o estalinista impuseram. 

E há, claro, os clássicos. Talvez as melhores escolhas para as longas tardes sem agenda e sem compromissos ainda sejam algumas grandes obras cuja dimensão assusta, da Guerra e Paz de Tolstoi à Montanha Mágica de Mann, passando por Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, ou por O Homem sem Qualidades, de Musil. Até porque com elas não haverá aborrecimento possível ou sensação de tempo gasto sem utilidade. 

Boas férias e melhores leituras. Vale a pena.

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