Habitat

Público 2012-08-06
Rui Tavares

A cultura é o habitat do ser humano. Se não formos o mais frágil dos animais, somos certamente dos mais dependentes e até mais tarde, mas o nosso habitat envolve-nos tanto que não precisamos de dar por isso. Raramente temos de experimentar como a exposição a um certo frio a mais ou um certo calor a mais nos mataria. Mas temos roupas, e temos casas, e temos até refrigeração, e com elas podemos viver no Ártico ou nos trópicos.
Há humanos que vivem em órbita, outros que foram à lua. Poderemos um dia viver noutro planeta. O que nos levará lá será a cultura humana, e o que nos manterá foi podermos estender até lá o nosso habitat, que é a cultura humana. Veja-se um astronauta: vai numa nave, é protegido por um fato espacial, e podemos chamar a isso "técnica", ou "ciência", ou até "indústria". Mas a maneira como a técnica se transmitiu, ou a ciência se fixou, o conhecimento se recordou e se descobriu como fazer descobertas - a linguagem que se usou, as instituições onde aconteceu, os livros e as controvérsias e os avanços e recuos - isso é cultura.
Os peixes vivem dentro de água. Esse é o habitat deles. Nós poderemos um dia viver debaixo de água. Mas não sem cultura.
Chegado a este ponto dir-me-ão que, da forma como a descrevo, cultura é tudo, e sendo tudo acaba por não significar nada. É um argumento comum, e não é verdade.
A água é de novo um bom exemplo: é o habitat dos peixes, e não podem viver sem ela, mas nem tudo é água. Há montanhas debaixo de água, e montanhas fora, e uma realidade que interage com o habitat dos peixes. Assim a cultura não se opõe à natureza, antes é uma emanação dela. Há muito na realidade física que não é o nosso habitat.
Sendo cultura o habitat dos humanos, é cultura também aprender a cuidar do nosso habitat, e melhorá-lo (incluindo cuidar da frágil relação entre o nosso habitat e o resto do mundo físico). Nesse processo aprendemos a aprender - o mesmo é dizer "ampliamos o nosso habitat".
Já muitos notaram que mesmo civilizações de que se dizia possuírem "uma alta cultura" foram capazes das maiores crueldades, de grandes matanças e invasões. O que é verdade. Se um povo roubar o chão por debaixo dos pés de outros povos, e se lhe matar os filhos, isso significa que por muito orgulho que tivesse na sua cultura, ela não tinha aprendido a respeitar-se enquanto cultura humana, ou seja, enquanto habitat de todos os humanos.
O mesmo pode dizer-se hoje de quando escrevo neste computador, e de quando me lês neste jornal, ambos produtos de economias desenvolvidas, mas em certos lugares do nosso globo ainda há gente que morre por doenças de que há muitas gerações já descobrimos a cura. A cultura humana, o nosso habitat onde tão bem se pode por vezes viver, ainda não é um habitat onde se possa sempre viver. Mais uma vez, isso não é uma falha da técnica ou da ciência, que parecem ter possibilidades de providenciar a todos os humanos. É uma falha humana, de não usarmos a cultura, que é o nosso habitat, para melhorar o nosso habitat, que é a cultura.
Nem sempre nos lembramos disto, porque nem sempre nos encontramos frágeis. Mas se um dia estiveres a morrer de frio - e te bastar tomar um banho de água quente a que nem todos os humanos têm acesso. Ou se um dia estiveres doente - e te bastar tomar um comprimido a que nem todos os humanos têm acesso. Verás nesse dia que foste salvo por milhões de humanos de todos os tempos que nem sequer conheces. Chama-lhe o que quiseres. E tenta levá-lo aos outros.

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