Sobre as saudades

Inês Teotónio Pereira , i-online 4 Ago 2012
Nós temos saudades. E a sério. Daquelas violentas que fazem inchar os olhos e vestirmo-nos de preto


A primeira vez que sofremos a sério na vida é de saudades. Começamos logo de pequeninos, como bons portugueses que somos, a ter saudades. Logo de novinhos, ainda sem dentes, a sentir a alma a quebrar, o coração a apertar, e a ensaiar silenciosos e nostálgicos poemas sobre a saudade que mais tarde reconhecemos em letras de fados. A primeira angústia que sentimos a sério é essa, a que vem da tristeza de não estarmos com quem gostamos, de sofrermos horrorosamente com essa ausência, com essa distância, com esse abandono.
Somos portugueses, inventámos o fado e oferecemos poetas ao mundo porque não nos conformamos com as ausências. Nós temos saudades. E a sério. Daquelas violentas que fazem inchar os olhos e vestirmo-nos de preto. Nós sabemos como é entregarmo--nos à dor e ao queixume de forma profissional, como deve ser. Como lembrou um dia Miguel Esteves Cardoso, saudade é uma palavra exclusivamente portuguesa. Ou seja, é uma coisa genética, uma autêntica versão lusitana da tristeza. É um fado.
E porquê esta intensidade? É que nós, portugueses, não reagimos à saudade, nós não nos resignamos e também não tentamos acabar com a coisa. Ficamos ali, especados, com saudades. Nada mais. O Marco, por exemplo, um napolitano de gema, não se conformou com a partida da mãe e atravessou o mundo à sua procura. Não ficou no cais a choramingar. Ora, qualquer Marco português teria ficado a carpir em Alfama e a cantar fado pela rua.
Quando somos pequenos, as saudades assumem proporções verdadeiramente alarmantes. Lembro-me de ter saudades dos meus pais quando eles iam jantar fora… Durante aquelas intermináveis duas horas escrevia-lhes recados e mais recados – verdadeiras declarações de amor – que deixava na cabeceira da cama deles. E fazia-o com a mesma nostalgia de quem escreve cartas para o irmão que emigrou para França há 20 anos, com a mesma mágoa de quem deixa ir um filho para a guerra.
Mas o pior era quando não dormia em casa. Saudades a sério, as mais duras e as mais cruéis que quaisquer outras que experimentemos em crescidos, é aquelas que sentimos quando nos deixam em casa de alguém para dormir. É como se fosse uma espécie de estágio, de treino para a desgraça: “Olha, era assim a tua vida sem nós. Vai-te habituando.”
As saudades nas crianças têm uma agravante: cheira a abandono. Uma criança não olha para a frente, para o futuro, ela vive o presente com a memória do passado – sem qualquer expectativa, portanto. Por isso, perante a ausência de alguém de quem gosta, ela não pensa que vai rever quem a abandonou, pensa apenas que perdeu essa pessoa e que sente falta dela. E que sente cada dia mais falta dela. Tipo desgosto de amor, daqueles em que não se dorme bem, não se come, não se sorri com vontade. Daqueles desgostos que nos fazem morrer um bocadinho.
Quando se diz “morrer de saudades” não é exagero: é português. Acho mesmo que é possível morrer de saudades, como acontece com alguns animais que deixam de comer e desistem de viver quando os donos desaparecem. Por exemplo, um dos meus filhos vai para um campo de férias. E só de pensar nas saudades que vai ter, já está cheio de saudades. Sofre porque tem a certeza de que vai sofrer, que vai ter saudades. Olha para nós como se fosse a última vez que nos põe a vista em cima. Suspira profundamente como se o ar lhe magoasse a alma. Deprimente. Mais uma semana nisto e temos um poeta.

Comentários

Anónimo disse…
Não sei se Vexa sabe, nem sei se Vexa aprova o comentário: a mansão (palácio) do Duque de Verágua, em Madrid, descendente em linha recta de Cristovam Cólon, chama-se Saudade... Um nome tipicamente castellaño.
Abraços!
Anónimo disse…
Inês: a sua Família tem bom nome – Teotónio (Theotonio) Pereira. Acho que o honra. Basta este grande texto "Sobre as saudades". É lindo. Consegue dizer tudo sobre a Saudade. Não sei se a conhecerei e, até, se gostaria de a conhecer. Por vezes a nossa imaginação consegue maiores feitos do que a realidade. Um abraço deste velhinho. earso

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