A falência é um estado de espírito

ALBERTO GONÇALVES
DN 2012-09-30

É extraordinária a quantidade de gente capaz de interpretar os sentimentos expressos nas manifestações de rua. Não possuo tal dom. Ouço e leio as palavras de ordem (pelo televisor, salvo seja) e acabo mais confuso do que comecei.
Ao que tudo indica, o povo em protesto não quer aumentos de impostos e, em simultâneo, não quer a redução na despesa que compensaria a manutenção dos impostos tal como estão ou estavam. O povo pretende a expulsão da troika e não se encontra minimamente preparado para a penúria que a partida da troika implicaria. O povo rejeita a austeridade sem perceber que a alternativa é uma austeridade maior e menos meiga. O povo está contra o Estado e vive apavorado com a ideia de que o Estado recue nas suas vidas. O povo insulta o Governo que desastradamente tenta corrigir as contas públicas embora não deseje que as corrija com acerto, nem dedique grandes insultos aos governos que deliberadamente transformaram as contas públicas na ruína actual. O povo, em suma, é realista à maneira do Maio de 68: pedindo o impossível. Impossível no sentido de que não tem pés nem cabeça.
É natural que o povo, às vezes constituído por serventes partidários, às vezes por gente em autênticas dificuldades, às vezes por sujeitos que berram qualquer coisa, caia nesta teia de contradições. Não deveria ser natural que as contradições chegassem a jornais ditos de referência sob a forma de colunas de opinião. A opinião é livre? É, e Deus nosso Senhor sabe o quanto agradeço a benesse. Por acaso, a irracionalidade também não conhece amarras, donde a emergência de textos do calibre do de José Vítor Malheiros, no Público de 25 de Setembro.
O título do texto ("A Dívida Existe Mesmo?) já arrepia. O pior é que após a pergunta do título o sr. Malheiros gasta uma data de caracteres a responder "não". Não perderei tempo a comentar os, digamos, "argumentos" do homem (o João Caetano Dias fê-lo brilhantemente no blogue Blasfémias). Basta resumi-los: para o sr. Malheiros, o défice e a dívida que decorre dos sucessivos défices (ele pensa ser ao contrário) são uma história mal contada, um provável estratagema para oprimir as massas que nada justifica, excepto talvez os favores às construtoras e aos bancos.
Perante isto, o que fazer? Podemos, claro, organizar uma colecta a fim de enviar o sr. Malheiros para um curso de Economia ou um merecido descanso. Porém, podemos igualmente aproveitar o mote e estender a tese ao que nos aprouver. A dívida não existe. O Estado esbanjador não existe. Os gastos com os salários e as prestações sociais não existem. Os custos da educação e da saúde não existem. As autarquias e as regiões autónomas não existem. As fundações e as empresas públicas não existem. O Magalhães não existe. Os estádios do "euro" não existem. Os pareceres, as consultorias e os estudos encomendados a amigos não existem. Os subsídios às energias "renováveis" não existem. Os apoios à "cultura" não existem. O socialismo não existe. O eng. Sócrates nunca existiu. E é duvidoso que, a médio prazo, o próprio país exista.
O exercício não é fortuito: se passarmos por doidos varridos, o mundo exterior comove-se e dá-nos um desconto moral. Infelizmente, dado que ninguém investe na demência, o mundo não nos dará um desconto material. Mas, de acordo com a escola financeira do sr. Malheiros, dinheiro não nos falta.

Comentários

Anónimo disse…
Alto aí! O "Magalhães" existe ... tneho um lá em casa.

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