Parar para pensar

Público2012-10-08  João Carlos Espada

Escrevi aqui há quinze dias que era difícil analisar a partir de Varsóvia a situação política portuguesa. Mas agora, que passei a última semana em Lisboa, a dificuldade não me parece menor. De súbito, a situação política nacional transformou-se, de experiência exemplar para a Europa, em confusão incompreensível.

Não me refiro à sucessão de protestos de rua, nem à peculiar inversão da bandeira nacional na cerimónia do 5 de Outubro. Não me refiro à verdadeira cacofonia de comentários televisivos, todos em regra atacando o Governo. Nem ao encontro das esquerdas a fazer propaganda de ilusões ao som da luta de classes. Refiro-me, com surpresa e muita apreensão, ao anúncio pelo ministro das Finanças de um "enorme aumento de impostos" que impõe uma taxa marginal de 54,5% para rendimentos anuais ainda não especificados, mas que alguns calculam acima de 150 mil euros e outros acima de... 80 mil!!!

A ligeireza com que a medida foi anunciada deixa-me perplexo. Numa sociedade livre, em que o Estado é entendido como estando ao serviço dos cidadãos e não os cidadãos ao serviço do Estado, a questão dos impostos é fulcral. Um dos primeiros princípios da Magna Carta de 1215 - sim, 1215 - é que o rei não poderá impor novos impostos sem o consentimento dos contribuintes. A infracção deste princípio por Carlos I, em 1640, com o levantamento de um novo imposto designado por Ship Money desencadeou uma guerra civil em Inglaterra de consequências trágicas, para o próprio rei, em primeiro lugar, e para todo o país em seguida. Um século mais tarde, a imposição de novos impostos às colónias americanas pelo Parlamento de Londres levou à guerra da independência norte-americana - que, na verdade, começou sob o lema da Magna Carta, "no taxation without representation".

Não se trata de bizarrias históricas. Trata-se de um princípio fundamental de uma sociedade livre. Aqui, os cidadãos são entendidos como tendo direitos anteriores aos governos e a legitimidade dos governos assenta na garantia desses direitos. Entre estes, está um direito básico aos frutos do trabalho de cada um. Quando o imposto ultrapassa 50 por cento dos rendimentos de qualquer um, ainda que numa taxa marginal, há um limiar intuitivo de justiça que é ultrapassado. Talvez seja legítimo, talvez seja necessário (o que francamente questiono). Mas, em qualquer caso, esse limiar não pode ser ultrapassado de ânimo leve e sem uma explicação cuidadosa, mesmo sem um pedido de desculpas aos contribuintes e sem um claro horizonte temporal para esta medida excepcional.

Há em regra duas tradições políticas que ignoram este pudor fiscal. Uma é a escola da luta de classes, em regra marxista, que pensa que cabe ao Governo tirar o que quiser aos que têm mais, com o argumento de que vai dar aos que têm menos. Os resultados dessas ideias ficaram à vista na ruína criada pelo comunismo, sob a ditadura de uma vasta oligarquia estatal privilegiada. A outra tradição política é mais vaga, chamemos-lhe "dirigista". Na década de 1970, reunia um vasto consenso no mundo ocidental. Conduziu à "estagflação" - estagnação económica, desemprego e inflação - e basicamente assentava no pressuposto de que os governos e os técnicos sabem melhor do que os contribuintes onde aplicar o dinheiro de cada um para promover o interesse geral.

As duas escolas são vanguardistas e autoritárias, embora em graus muito diferentes. Uma, em nome da igualdade. A outra, em nome da superioridade do conhecimento técnico centralizado. Ambas conduzem à estatização das economias, à asfixia da sociedade civil e à paralisia da iniciativa descentralizada dos cidadãos e das instituições, na qual reside o motor do crescimento económico e do progresso do conhecimento.

Na década de 1980, Ronald Reagan e Margaret Thatcher romperam o consenso dirigista paralisante da década anterior e relançaram o crescimento económico através de drásticas reduções dos impostos. Alcançaram, aliás, o que tinham prometido: aumentaram a receita fiscal global depois de baixarem os impostos, em parte porque a fuga ao fisco diminuiu, em parte decisiva porque a economia cresceu e, com ela, cresceu a base de incidência fiscal. Reagan e Thatcher restauraram um velho e nobre consenso ocidental, que foi vigorosamente reforçado pelo colapso do comunismo: o de que a presunção voltava a ser favorável a que os cidadãos têm direito ao fruto do seu trabalho e que o aumento de impostos, um mal a evitar mas que pode ser necessário, carece de cuidadosa explicação. Este consenso foi surpreendentemente quebrado entre nós pela ligeireza com que o mais recente aumento de impostos foi anunciado na semana passada. Acresce que esse aumento ultrapassou o limiar simbólico dos 50 por cento.

Prefiro não especular sobre as razões que terão estado na origem dessa ligeireza. No mínimo, ela indicia que os decisores políticos têm tido pouco tempo para meditar sobre o alcance e o significado das medidas que consideram indispensáveis. Nestas condições, um básico imperativo parece-me avisado: parar para pensar.

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