A propósito de bifes e meias-solas, de caridade e de fraternidade

Público 2012-11-16  José Manuel Fernandes
Frugalidade não é a mesma coisa que miséria. E adaptar as expectativas a um tempo sem crescimento é realismo

Nasci e cresci numa casa grande, com muitas assoalhadas e muita gente (somos cinco irmãos). Para os padrões da época a nossa vida era bastante desafogada, mas isso não impedia que a minha avó andasse atrás de mim e dos meus irmãos sempre que saímos de um quarto e deixávamos a luz acesa. Da mesma forma recordo-me de que se remendava a roupa e ia ao sapateiro para substituir as meias-solas, tal como se tinha cuidado para aproveitar os restos das refeições e havia sempre sopa, muitas vezes para nosso desespero. E, claro, cada um tinha um copo para lavar os dentes.

Não recordo o Portugal desses anos com qualquer saudosismo, bem pelo contrário. Nem comparo nenhuma das dificuldades por que hoje passamos com as dificuldades das décadas de 60, de 70 ou mesmo de 80: só gente completamente desmemoriada ou politicamente desonesta pode andar por aí a dizer que há hoje uma miséria que nem nessa época havia. É grotescamente falso, como comprovam não apenas as estatísticas como o simples acto de folhear jornais desse tempo e ler o que era então notícia ou motivo de reportagem.

Marcadas as distâncias, é necessário reconhecer que, infelizmente, o desenvolvimento económico das últimas décadas foi muitas vezes acompanhado por um desregramento no consumo que nem sequer correspondeu a mais qualidade de vida. Foi Ana Jorge, ex-ministra socialista, e não Isabel Jonet, que, ainda não há muito tempo, apelou às crianças e famílias para que aproveitassem "a necessidade de contenção para fazerem sopa em casa, por forma a não gastarem em fast-food que, para além de fazer mal, é mais caro". Fez a então ministra muito bem, e na altura ninguém se indignou, apesar do termo "sopa" poder lembrar, aos nossos bem-pensantes, a "sopa dos pobres".

Na verdade, goste-se ou não, as mudanças em Portugal terão sempre de passar por algumas alterações dos hábitos de consumo. Primeiro porque, como país, andámos demasiado tempo a consumir muito mais do que produzíamos. Todos, em média, 10 por cento a mais. Daí boa parte da dívida. Depois porque, nas famílias, a expectativa de que o rendimento disponível tendia sempre a aumentar, como havia aumentado nas décadas que levaram até à viragem do milénio, induziu comportamentos (e nalguns casos níveis de endividamento) que hoje não são sustentáveis. Vou dar apenas um exemplo concreto, o do hábito de ir comer fora, a começar pelo pequeno-almoço. Quando estudamos as estatísticas europeias comparadas, verificamos que enquanto uma família alemã dedica apenas 6% do seu rendimento disponível a despesas em "restaurantes e hóteis", essa percentagem chegou em Portugal aos 11%. Agora está a diminuir, o que naturalmente se reflecte nas dificuldades, ou mesmo nas falências, de milhares de cafés, pastelarias e restaurantes. Porém, pensando com frieza, será que isso não era inevitável? Ou até recomendável?

Frugalidade não é a mesma coisa que miséria. Reutilizar a roupa e o calçado não é vergonha e até pode ajudar a criar postos de trabalho em ofícios que antes estavam em vias de extinção. Recuperar mesmo os pequenos electrodomésticos, em vez de os deitar fora e comprar novos, é o que os ambientalistas há muito defendem. Sendo assim, porquê tanta polémica e tanta indignação com palavras que recomendam esta sensatez? Sem crescimento económico, um problema que não é de hoje e tem mais de dez anos, temos de realinhar expectativas e reaprender a viver. É melhor dizê-lo, e dizê-lo com clareza, do que continuar a fingir que se podem comer bifes todos os dias.

Claro que a controvérsia em torno das palavras de Isabel Jonet - ou a "indignação" exacerbada da esquerda ululante, como já lhe chamei - não visou apenas, nem sobretudo, as suas referências, melhor ou pior conseguidas, a uma maior moderação no consumo. O que certos sectores da opinião quiseram fazer foi ajustar contas com uma organização que ajuda realmente os pobres sem obedecer aos paradigmas radicais do que deve ser a "solidariedade social". É que, para esses sectores, a virtude da caridade é um pecado e o simples facto de alguém falar dos pobres sem propor a revolução torna-o suspeito de ser como a Supico Pinto do antigo regime, a imagem que Daniel Oliveira entendeu recuperar. A irritação com o trabalho do Banco Alimentar contra a Fome foi ao ponto de alguém como um antigo ministro do PS, Paulo Pedroso, ter sugerido no seu blogue que este não surge por causa da fome, mas antes para corrigir os defeitos da distribuição comercial de alimentos. Se não acreditam, vão ler.

A irritação de uma parte da esquerda com a ideia de caridade - a que chamam sarcasticamente "caridadezinha" - tem uma razão intestina e outra de elaboração intelectual. A razão intestina é que tudo o que possa aliviar o sofrimento dos desvalidos afasta-os também da revolta social com que essa esquerda sonha. A razão conceptual é que essa caridade não pressupõe um tratamento global de toda a sociedade de forma a, como dizem, "integrá-la", nem, ao mesmo tempo, constitui uma solução definitiva para os problemas de pobreza. Vale a pena perceber onde está o erro destes argumentos.

As visões que valorizam a caridade como forma de prestar serviços sociais não pretendem, de facto, soluções globais e totais, até se opõem a elas. Ao contrário dos profetas de um novo utopismo, não acham que caiba ao Estado resolver todos os problemas, ou mesmo simplesmente acorrer a todos os necessitados. Valorizam, em contrapartida, a ideia de que é melhor actuar de forma subsidiária, devendo quem está mais próximo dos problemas e das pessoas ter prioridade. Isto porque essas organizações informais e voluntárias de proximidade fazem melhor o trabalho de apoio aos necessitados - e fazem-no com mais carinho, mesmo com mais amor. É por isso que instituições como os bancos alimentares são preferíveis a serviços públicos com as mesmas funções. O facto de serem também mais eficientes e não consumirem os nossos impostos até resulta secundário.

O outro argumento errado é que estas instituições - ou outras semelhantes - seriam desnecessárias se as sociedades fossem justas e se se desse aos pobres condições para saírem da pobreza. Mais uma vez trata-se de duas realidades que não se opõem, antes são complementares. Mesmo onde existem os mais eficientes mecanismos para levar as pessoas a escapar da pobreza há sempre necessidade de acorrer aos que, pelos motivos mais diversos, necessitam de ajudas desinteressadas. E a ideia de que os Estados podem resolver todas as necessidades materiais de todos os seus cidadãos é uma das ideias utópicas mais falsas e mais perigosas, como a história do século XX bem nos mostra. Por fim, Bento XVI tem razão quando escreve (encíclica Deus Caritas Est) que "sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda", tal como "existirão sempre situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo".

Há quem entenda que o Estado, através do seu exército de funcionários, das suas imensas estruturas, da sua burocracia sem limites e das receitas sempre crescentes que obtém através de mais e mais impostos é que deve ser o dono da solidariedade social e o árbitro absoluto não só das necessidades de pão, como até das carências imateriais. Esse Estado teria mesmo a vantagem de nos desobrigar da preocupação com os nossos semelhantes, aliviando-nos a consciência.

Os que, em contrapartida, entendem que a sociedade não pode ser apenas formalmente justa, tem também de ser fraterna, e que isso passa pela relação entre os homens e não apenas pelo seu dever de pagarem impostos, valorizam instituições como os bancos alimentares e exemplos como os de Isabel Jonet. Porque também valorizam a liberdade e a responsabilidade pessoal, por onde necessariamente passa a busca da felicidade.

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