Casamento homossexual e tradição conservadora

João Carlos Espada
Público, 11/02/2013

David Cameron, o primeiro-ministro britânico, terá obtido mais duas vitórias na última semana: conseguiu a aprovação de um orçamento europeu restritivo, e fez passar no Parlamento britânico a proposta de casamento entre homossexuais. O alcance da segunda vitória é, no entanto, ambíguo.
A proposta de casamento homossexual foi aprovada por 402 deputados, contra 175, o que pode parecer, à primeira vista, uma margem mais do que confortável. Mas a verdade é que mais deputados conservadores, 139, votaram contra a proposta do seu próprio Governo do que a favor (132). Vários membros do Governo votaram também contra a proposta, criando uma divisão sem precedentes.
Acresce que a proposta de lei terá agora de subir à Câmara dos Lordes, onde se espera que seja derrotada. A maioria dos lordes conservadores e uma boa parte dos lordes trabalhistas serão contrárias à proposta. Prevê-se uma longa discussão que poderá inviabilizar a medida.
Por que razão arriscou David Cameron a divisão do seu partido numa matéria destituída de urgência, em que os casais homossexuais já dispunham de civil partnerships consagradas na lei?
Trata-se, em boa parte, de um cálculo político arriscado. David Cameron quis reconciliar a imagem cultural dos conservadores com os eleitores urbanos, sobretudo tentando atrair eleitores liberais-democratas. Os estudos de opinião disponíveis não confirmam, no entanto, esse cálculo. Sobretudo, revelam o elevado risco de divisão dos eleitores conservadores, com uma maioria significativa contrária ao casamento homossexual.
Mais interessante do que o cálculo político foi, sem dúvida, o debate substantivo. David Cameron procurou justificar a proposta de casamento homossexual com base na tradição conservadora do seu partido. Argumentou que os conservadores defendem a importância social e cultural do casamento e que, por isso, querem alargar os benefícios dessa instituição aos casais homossexuais. Querem ainda fortalecer os laços sociais, explicou, uma vez que a sua prioridade é uma sociedade forte, não um Estado forte.
O argumento é sem dúvida imaginativo e revela uma curiosa metamorfose no contexto cultural das chamadas causas fracturantes. No passado, estes temas eram apresentados contra as instituições convencionais, como o casamento, que eram acusadas de hipócritas, burguesas, etc. Agora, os mesmos temas fracturantes passam a querer beneficiar do acesso às instituições que antes denunciaram.
De um ponto de vista conservador, ou não-revolucionário, pode ser dito que há aqui um progresso. As instituições sociais passaram a ser reconhecidas como estruturantes e necessárias - a ponto de serem reclamadas por modos de vida alternativos. Em contrapartida, o seu alargamento a estes modos de vida alternativos arrisca-se a esvaziar de sentido aquelas mesmas instituições.
Como encarar este problema de uma ponto de vista não-revolucionário nem contra-revolucionário?
Antes de mais, recordando o princípio não-revolucionário e não-contra-revolucionário de que as instituições sociais não foram nem são basicamente produto do desígnio político. Elas emergem e amadurecem através da interacção espontânea entre os actores sociais e entre as gerações. As decisões políticas podem proteger ou atacar, fortalecer ou enfraquecer, as instituições sociais. Mas não podem, no sentido de que não conseguem, criá-las nem extingui-las por simples decreto.
Numa democracia, este diálogo tem lugar entre as instituições sociais e as instituições políticas, em primeiro lugar o Parlamento. O Parlamento escuta a sociedade e procura interpretar a sua respiração. Esta, por sua vez, reage, continua a respirar e reemite sinais ao Parlamento. A questão crucial, de um ponto de vista não-revolucionário e não- contra-revolucionário, reside em não cortar, não interromper, esta mútua conversação.
No caso do casamento, uma instituição civil ancestral, a respiração social é particularmente decisiva. É de prever que ela vá agora processar-se sobretudo através das instituições religiosas que consagram o casamento apenas entre casais heterossexuais monogâmicos, basicamente as igrejas cristãs.
Este seria um típico ajustamento espontâneo, não- revolucionário e não-contra-revolucionário. Se o Estado decidir democraticamente retirar ao casamento a sua natureza exclusivamente heterossexual e, possivelmente no futuro, também monogâmica, o efeito não-intencional dessa medida pode muito bem vir a ser o recrudescimento espontâneo dos casamentos religiosos cristãos. Este desenvolvimento não seria seguramente surpreendente para a tradição conservadora reclamada por David Cameron.

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