Um apelo à serenidade no meio da turbulência

João Carlos Espada
Público 25/02/2013

Muito já foi dito sobre o regresso de Grândola, Vila Morena ao repertório político nacional. Pessoalmente, penso que o primeiro ponto a sublinhar é que cada um é livre de ter as suas próprias preferências musicais e que os outros pouco ou nada têm a ver com isso. Outro ponto, todavia, consiste em usar uma canção que é símbolo da liberdade para impedir a liberdade de expressão de outros, mesmo que esses outros sejam governantes - mesmo governantes de credibilidade discutível.
Mais grave, contudo, parece-me ser o facto de a canção da liberdade ser usada numa Universidade para impedir a expressão de um argumento de que se discorda. A Universidade é o lar da permanente discórdia tranquila, do confronto civilizado entre pontos de vista rivais. É assim há 2500 anos. Deve imperiosamente continuar a sê-lo e não imagino nenhum argumento, nenhuma indignação legítima, nenhuma causa superior, que possa por um dia que seja interromper essa tradição de liberdade - que deve ser intocável no interior dos muros de uma Universidade.
Finalmente, é legítimo perguntar o que significa realmente o retorno da canção de Zeca Afonso ao repertório político nacional. Costumávamos cantá-la, antes do 25 de Abril de 1974, como forma de protesto contra um regime ditatorial que não respeitava direitos básicos da pessoa e do cidadão. Vivemos hoje em liberdade e democracia constitucional. Vem a propósito usar a canção da liberdade para atacar um Governo eleito livremente e livremente sujeito à crítica e escrutínio públicos?
Receio que o efeito, eventualmente não intencional, possa ser a desvalorização e não a valorização da democracia. Quando começa a confundir-se a crítica a um Governo e a uma política com a resistência contra a ditadura, algo de fundamental está realmente a ficar confuso. Quem viveu sob a ditadura sabe no entanto que a diferença é óbvia. E deve dizê-la: antes do 25 de Abril, os acontecimentos da semana passada teriam terminado com prisões e cargas policiais e não teriam sido noticiados, muito menos debatidos, nos jornais. Essa é a brutal diferença. Convém não esquecê-la.
Quanto ao Governo, por seu turno, creio que está na altura de parar para pensar, como julgo ter sugerido aqui em Outubro passado. Não propriamente porque discursos dos governantes andem a ser interrompidos, mas porque esses discursos precisam de ser confrontados com os factos.
Este Governo foi eleito com um programa de saneamento do despesismo estatal e de reforma dos privilégios financiados por esse despesismo. Digamos que havia um programa de "libertação da sociedade civil", uma expressão carregada de esperança que foi há muito tempo, creio que logo após o 25 de Abril ou depois do 25 de Novembro, enunciada por Francisco Pinto Balsemão.
Em vez disso, temos assistido a um preocupante, senão mesmo alarmante, aumento da carga fiscal sobre essa mesma sociedade civil. O resultado tem sido a espiral recessiva que hoje é inegável. E, com ela, a quebra das receitas fiscais que se pretendia aumentar. Já aqui sugeri que o resultado final pode estar a ser uma espiral estatizante, através da asfixia da economia e sociedade civis.
Em democracia, regime em que indiscutivelmente vivemos, a pergunta banal que se impõe é a seguinte: em que eleitorado se reconhece este Governo? Para quem fala? Com quem conta? Pode parecer uma pergunta pedestre, mas é uma pergunta importante. Se a resposta fosse, por exemplo, para os portugueses que cumprem a lei e pagam os seus impostos, então a necessária conclusão teria de ser que as expectativas desses eleitores têm de ser tomadas em conta.
Esta pode ser a explicação da irritabilidade crescente que parece alastrar na sociedade portuguesa. É uma irritabilidade difusa, mas contagiante, que atravessa o espectro político-partidário e afecta muitos sectores, não apenas os que são tradicionalmente favoráveis às oposições. Essa irritabilidade exprime desapontamento, cansaço, quebra de horizontes de esperança. O Governo devia preocupar-se com esses sinais. Mas a oposição democrática também. A irritabilidade difusa mas persistente, em democracia, não afecta apenas os partidos do Governo. Mina a confiança, e esta é o suporte do regime democrático, o qual, como costumava recordar Raymond Aron, é obra comum de partidos rivais.
P.S.: Um possível estímulo para reencontrarmos um espírito de diálogo nacional tranquilo pode talvez ser encontrado num lugar inesperado: o filme sobre Lisboa que o embaixador da Polónia em Portugal, Bronislaw Misztal, acaba de produzir. Raramente um recém-chegado a Lisboa (em Agosto do ano passado) terá expressado de forma tão tocante o apreço pela maneira de estar portuguesa. O filme pode ser visto na página oficial da Embaixada da Polónia: http://www.lisbon.mfa.gov.pl/.

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