Górgias na RTP

João Miguel Tavares ´Público, 29/03/2013

VÍTOR - Diz-me, Sócrates, por que decidiste colocar um fim ao teu silêncio?
SÓCRATES - Acaso um homem não tem o direito de falar, Vítor? Todas as coisas têm o seu tempo. Há tempo para calar, e há tempo para falar. Este é o tempo para falar.
VÍTOR - Dizes bem, Sócrates. E é admirável ouvir da tua boca o sétimo versículo do terceiro capítulo do Eclesiastes, sobretudo porque isto é a Grécia e tu estás a citar a cultura hebraica. Mas todos sabemos que tu não és ateniense nem grego, mas um cidadão do mundo.
SÓCRATES - Assim é, Vítor.
VÍTOR - Responde então, Sócrates, a esta questão: é também este um tempo para a guerra e um tempo para o ódio, como está escrito no versículo seguinte?
SÓCRATES - Espera um pouco, Vítor, que já vou falar do Presidente da República. Antes disso, como homem sábio que és, suponho que já terás escutado a narrativa dos meus adversários, que me querem atribuir todas as culpas pelo estado do país. Esta narrativa - e fixa esta palavra porque a vou repetir muitas vezes - é apenas uma mistificação grosseira, que tem origem em três embustes. Queres saber que embustes são esses, Vítor?
VÍTOR - Claro, Sócrates. Quais são?
SÓCRATES - Então vou dizer-te, mas por favor não me interrompas, que isso deixa-me irritado. O primeiro embuste consiste em não atribuir à crise internacional todos os males do país. O segundo embuste consiste em dizer que foi o anterior Governo que nos conduziu à ajuda externa. E o terceiro embuste consiste em dizer que o actual Governo só está a cumprir o memorando assinado pelo Governo anterior. Já escutaste estes três embustes, Vítor?
VÍTOR - Já escutei esses três argumentos, Sócrates. Hesito em classificá-los como embustes. Não encontras qualquer veracidade em tais teses? Entendes nunca ter errado?
SÓCRATES - Por Zeus, ó Vítor! Só o facto de fazeres essa pergunta já te torna cúmplice da narrativa única. Permite-me, então, contraditar essa narrativa, porque a verdade é irrefutável. É agora altura de seres tu a responder. Se eu me encostar a uma coluna do Parthenon para repousar após uma festa deliciosa, dirias que cometi um erro, Vítor?
VÍTOR - Claro que não, Sócrates.
SÓCRATES - E se com esse meu acto provocar a derrocada do edifício, que se encontrava em estado de grande precariedade? Nesse caso já errei, Vítor?
VÍTOR - Naturalmente.
SÓCRATES - Mas se o acto é o mesmo, como é que numa situação ele é um erro e na outra situação não o é? Não te parece que há aqui uma contradição?
VÍTOR - Assim parece.
SÓCRATES - Estás familiarizado com a ideia latina de mens rea, Vítor?
VÍTOR - Receio não estar, Sócrates. Isto é a Grécia.
SÓCRATES - Ao menos sabes que nada sabes, Vítor. Já não é mau. Dizem os latinos: "Actus non facit reum nisi mens sit rea". "O acto não é culpável a não ser que a mente seja culpada." Percebes o que isto quer dizer?
VÍTOR - Creio que sim, Sócrates. Mas a que propósito vem isso?
SÓCRATES - A propósito de ser essa a ideia que melhor se aplica às minhas acções, Vítor. Elas podem vir a provar-se erradas a posteriori, mas nunca foram erradas a priori, e por isso de nada sou culpado. Aqui está o que ouvi e considero verdadeiro. Eu só erro se souber por antecipação que estou a errar, e por isso, se se descobrir no futuro que errei no passado, isso não é realmente um erro, já que no passado eu estava certo de estar certo. Logo, nunca erro.
VÍTOR - Mas, Sócrates...
SÓCRATES - Convence-te de que tenho razão, Vítor.
VÍTOR - Mas, Sócrates...
SÓCRATES - Vá, agora não me incomodes mais. Voltamos a ver-nos para a semana.

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