Porquê tantos idosos? Porquê tanta tristeza?

José Manuel Fernandes  Público, 08/03/2013

Não foi uma manifestação de famintos, muito menos de desesperados. Mas pesou nela o silêncio das fatalidades

Há dois anos, a 12 de Março de 2011, uma boa parte do país saiu à rua convocada pela "geração à rasca", a dos mais novos, a dos que sentiam o futuro barrado num país que vivia os estertores finais de uma enorme ilusão. Sábado passado muitas ruas e praças voltaram a encher-se, mas de gente diferente. Desta vez foi sobretudo gente de mais idade - muitos, talvez a maioria, já de cabelos brancos - a que nos surgiu nos ecrãs de televisão. E gente também mais triste, silenciosa. O que é que se passou? O que é que isto significa?
Não tenho nenhuma resposta, tenho porventura algumas pistas. A principal é a de que pairou sobre as manifestações, tal como paira sobre o país, uma sensação de fatalidade. Houve manifestantes que ingenuamente o confessaram, quando disseram aos repórteres que provavelmente nada mudaria no dia seguinte aos desfiles, mas houve sobretudo a enorme omissão sobre como fazer diferente. A própria convocatória criou o paradoxo: devia-se estar ali para dizer "que se lixe a troika", mas esteve-se ali sobretudo para desabafar contra os poderes públicos. Muitos, talvez a maioria, dos que desfilaram nem sequer querem que a troika se vá já embora - sabem que tudo ficaria pior se isso acontecesse. Mas a quase totalidade está zangada com o que nos está a acontecer e precisava de o dizer alto. Sobretudo os idosos da classe média, os que nos últimos dias de Fevereiro ficaram a conhecer os cortes nas suas pensões.
Mas a sensação de fatalidade tem raízes mais fundas, não deriva apenas das emoções contraditórias de um dia de manifestações. Ela radica na falta de esperança e num sentimento difuso de desorientação. Falta de esperança não por causa do discurso canhestro do Governo, como gostam de explicar alguns comentadores e candidatos a conselheiros do príncipe, mas por se olhar para o país, para a Europa e para o mundo e não se perceber como é que as coisas vão poder melhorar. A revolta contra tudo o que é político, naturalmente com mais virulência contra tudo o que é ministro, mas também contra tudo o que é banqueiro, ou gestor, ou reformado rico, não corresponde à reemergência do velho mal nacional da inveja, antes deriva da percepção de que os futuros estão fechados, de que os elevadores sociais desapareceram, de que deixou de se saber o que fazer para melhorar a vida. Nos cafés, nos transportes públicos, não se comenta apenas a última indignação facebookiana, também se pergunta, singelamente, quando é que "isto" acaba ou como é que "isto" pode mudar. E ninguém tem respostas. Pelo menos ninguém tem boas respostas. Nessa altura regressa-se ao jogo das culpas, apesar de tudo mais fácil e mais consentâneo com o nosso modo de ser.
Há quem responsabilize o líder da oposição por esta sensação de fatalidade e ausência de respostas mobilizadoras. Não creio, sinceramente, que seja justo. A verdade é que não é só António José Seguro que não consegue explicar como, com ele, "isto" acabaria. A verdade é que todas as restantes vozes mais à esquerda também não o fazem porque nunca assumem o custo das alternativas que propõem. O dilema do "todos mais ou menos iguais" é tal, os partidos do arco da governação estão presos numa tal teia que uma diferença de uma dúzia de euros no salário mínimo é logo uma divergência maior. Já os partidos radicais estão apenas contra, pois não se consegue saber do que estão a favor - em parte porque nem eles próprios sabem, em parte porque não querem confessar.
Este anular das alternativas pode tornar-se perigoso para as democracias, pois reduz a política à desconfiança e abre caminho à demagogia e ao populismo. Pior: a cacofonia incendiária, por vezes descaradamente grosseira e mal-educada, que já enche as colunas de opinião e os espaços de comentário, é apenas a primeira manifestação dessa tendência. É que mesmo sem se chamarem Grillo haverá sempre comentadores que não desdenhem saltar do espaço mediático para a tribuna de um comício.
Não faltam também os sinais de desorientação ao mais alto nível. Pessoas com responsabilidade na nossa democracia advogam de forma mais aberta (como Vasco Lourenço) ou mais velada (como Mário Soares) soluções que não andam longe do golpe de Estado. De passagem recusam-se a aceitar a legitimidade de uma maioria política que, goste-se ou não dela, resulta da vontade eleitoral. Já outros querem que o Governo se demita, mas sem eleições. Não chega bem a perceber-se o que defendem, porque já saiu de moda a ideia do "Monti português" e ainda não entrou a de uma reedição do "bloco central". Há quem sonhe em alternativa com um golpe palaciano no PSD e quem sugira, sem assumir, que o primeiro-ministro deve passar o testemunho, como se fosse possível ou virtuoso termos de novo algo semelhante à troca de Durão Barroso por Santana Lopes.
O Governo, e Passos Coelho, também não ajudam. Por razões de que toda a gente fala e eu subscrevo, como essa miséria moral que é manter Miguel Relvas como ministro, e por razões de que ninguém fala mas eu critico, como a real incapacidade da maioria dos ministros para fazerem diminuir a presença do Estado na economia e na tutela da nossa vida colectiva - alguns até estão a fazer o contrário.
Olha-se para isto tudo, olha-se também para o espectáculo dado nos últimos meses pelas nossas elites, presas como nunca aos seus preconceitos, às suas vaidades e aos seus privilégios relativos, e facilmente se entende a sombra que pareceu pairar sobre os manifestantes. É para as razões dessa sombra, para os porquês do sentimento de fatalidade que desceu as avenidas de braço dado com uma longa lista de indignações e queixas, que os responsáveis políticos deviam olhar. A meu ver é esse o sentido que deve ter "escutar" os manifestantes.
A 14 de Setembro escrevi neste jornal que Passos Coelho acabara de perder o país. No dia seguinte tive na manifestação a confirmação do diagnóstico. Defendi na altura que isso se devia, em boa parte, à incapacidade de o Governo manter o consenso de que havia necessidade de corrigir as contas públicas e de fazer sacrifícios. Passaram seis meses, vieram mais sacrifícios, ainda não se vê a luz ao fim do túnel mas também ainda não ocorreu a explosão social que tantos antecipam há tanto tempo - nem isso, nem uma manifestação maior. Mas o caldo que então se tinha entornado entretanto azedou, o que faz com que a situação seja ainda mais difícil e os caminhos mais estreitos.
Nessa altura, no meio da polémica da TSU, Abebe Selassie, o chefe de missão do FMI, notou que não havia nenhuma "bala mágica" que resolvesse a nossa crise económica e financeira e fosse consensual. Hoje também não há nenhuma "bala mágica" que nos livre de uma crise política e desta evidente crise de confiança. Mas há algumas coisas que podíamos fazer. E uma delas é assumir, com mais clareza, com mais frontalidade, com mais coragem, as diferenças de opinião que suportam diferentes opções políticas e económicas. O Governo não pode esperar (se é que ainda pode esperar alguma coisa) conseguir um mínimo de acordo para as reformas ou para os cortes se continuar a dizer que é apenas uma questão de dinheiro e de contas. As diferentes oposições têm o dever, por seu turno, de acompanhar com contas as suas escolhas ideológicas. As pessoas têm o direito de saber.
A política não é apenas Hobbes e Maquiavel, sentido de Estado ou manobras de spin. É também Rousseau e Burke, Marx e Churchill, Hayek e Keynes. Uma coisa é ter políticas realistas, outra diabolizar as ideologias, como em Portugal se tem feito nos últimos tempos. O resultado são ideologias falsas, e consensos balofos, como os construídos em torno do euro ou do "rigor orçamental". O resultado é ficarmos sem reais alternativas e com muita gente nas ruas à mercê da facilidade dos populismos.

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