Nem consenso, nem dissenso, isto é mais "sonsenso"

José Manuel Fernandes, Público, 03/05/2013
Ut prat num dunt in vel enis ad eu feugueriure con hendre feummy nummy nosto consed

Não se preocupem. Afinal estamos todos de acordo. O que é preciso é dar prioridade ao crescimento e ao emprego. A austeridade é uma coisa do passado, ou quase do passado. Não fossem alguns teimosos - a Merkel, o Gaspar - e já estaríamos de novo no paraíso. Até o Cavaco voltaria a ser bem-amado.
Numa altura em que tanto se fala de "consenso", este é o consenso vigente. Basta ler os jornais e olhar para as televisões. Só não se percebe é por que continuam todos a gritar uns com os outros, a trocar cartas de amor e desamor e a dar murros na mesa. Talvez porque as aparências iludem, e porque todo este discurso sobre o "consenso" não passa de uma ilusão. De uma dupla ilusão. Primeiro, a de que sabemos do que falamos quando falamos de "crescimento e emprego". Depois, a de que o melhor da política é a convergência, a união, o sermos todos muito amigos e estarmos todos de mãos dadas.
Um dos primeiros alçapões do "consenso" sobre o crescimento e o emprego é a ideia de que se houver mais crédito na economia haverá mais investimento e mais desenvolvimento. É esse o ponto comum entre as propostas do ministro da Economia e as apresentadas no Congresso do PS. É um "consenso" simpático, não magoa ninguém, mas que esbarra em duas dificuldades. Por um lado, Portugal teve crédito abundantíssimo durante os dez anos sem crescimento que antecederam a crise. Nessa altura não foi por falta de dinheiro que não houve bons investimentos, antes foi por abundância de dinheiro que se realizaram investimentos desastrosos e se estimulou o consumo até níveis que levaram aos actuais níveis de endividamento público e privado. Por outro lado, os bancos, cujo negócio é emprestarem dinheiro, têm referido que faltam é boas propostas de investimento, e ainda não os vi serem desmentidos.
Ou seja, há "consensos" que pouco nos adiantam, pois seguem o caminho fácil de tentar agradar a todos. São consensos moles que não levam a parte alguma, ou então levam de regresso aos hábitos desastrados das últimas décadas. São consensos que não nos servem.
Há um outro tipo de "consenso" que também tem vindo a fazer o seu caminho. É o que coloca a resolução de boa parte dos nossos problemas não em Lisboa, mas em Berlim e em Bruxelas. É o consenso que diz que não está nas nossas mãos a solução dos problemas que enfrentamos, mas sim nas mãos daqueles com quem temos de renegociar os nossos compromissos. Se olharmos para as propostas saídas do congresso do PS, verificamos que a maioria delas depende ou da boa vontade dos nossos credores ou de mudanças radicais e pouco prováveis de políticas europeias. Uma parte do discurso do Presidente no 25 de Abril também foi por esse caminho e o PS até o teria aplaudido se não tivesse reagido de forma tão sobreexcitada à reafirmação por Cavaco daquilo que devia ser uma evidência para todos os actores políticos: que ele não interromperá a legislatura enquanto houver um governo com maioria parlamentar.
Esta forma de criar consensos e fazer política não deixa de ser curiosa. Face às agruras do presente, promete-se um amanhã radioso que não depende de nós mas de quem nos empresta o dinheiro de que continuamos a necessitar para salários e pensões. Tudo sem sequer tentar perceber se Berlim ou Bruxelas mostram a mais pequena vontade de nos fazer a vontade. É um consenso fácil, sem custos políticos.
Mas o mais angustiante em todo este debate sobre o "consenso" é que ninguém parece preocupado com o facto de não existirem sequer bases para construir esses desejados consensos. Nem para o consenso sobre o "crescimento e o emprego", reivindicado pelo PS, nem para o consenso sobre a "reforma do Estado", pedido pela maioria.
Não existem bases para os desejados "consensos" porque, na verdade, nem sequer conhecemos os pontos de partida, isso é, as plataformas negociais do Governo e das oposições. No domínio das políticas de crescimento, por exemplo, de um lado e do outro parece existir acordo em que não será possível baixar os impostos num horizonte temporal curto, quando o acordo devia ser exactamente o contrário, ou seja, que sem baixa da carga fiscal será sempre difícil estimular o crescimento económico, pelo que a discussão devia ser sobre como tornar possível a descida de impostos. Mas não: com base na esperança de que o crescimento permita aumentar as receitas e, depois, diminuir os impostos, não se tomam as únicas medidas capazes de possibilitar esse mesmo crescimento. Isto sim é uma espiral recessiva.
Mais significativo é o que se passa com o tema da reforma do Estado. Na retórica, todos estão de acordo. Governo e oposição. Colunistas e "senadores" de todos os matizes. Mas muito poucos, ou nenhuns, dizem o que entendem por "reforma do Estado". Apenas cruzam acusações sobre o "Estado mínimo" e o "Estado social".
Em Portugal (mas não só, não só) há a ideia de que tudo é um problema tecnocrático ou, então, um problema de abusos. De que os problemas dos sistemas de ensino ou de saúde se resolvem com uma melhor gestão ou com o fim dos privilégios. À esquerda ou à direita poucos põem em causa os modelos existentes e quase ninguém diz aquilo que devia ser óbvio: sem questionarmos esses modelos não seremos capazes de realizar os "cortes estruturais na despesa" que todos parecem reclamar - até mesmo os que barafustam contra o "fim do Estado social".
Quando falamos de questionar os modelos existentes falamos de discutir o actual equilíbrio entre o que é responsabilidade do Estado e o que é responsabilidade dos cidadãos e das famílias. No nosso modelo actual existe a ideia subjacente de que tudo é responsabilidade do Estado. E o que ainda não é (como a compra de medicamentos ou de livros escolares), um dia há-de ser. Não custa a perceber que assim a despesa pública em funções sociais só pode continuar a subir de forma exponencial. Mesmo os melhores gestores do mundo só conseguiriam conter esse crescimento, não invertê-lo.
Reformar o Estado tem pois de passar por saber que peso e função deve ter o Estado em todas as áreas sociais. E onde deve haver um maior envolvimento dos cidadãos e das famílias. Quer através de mais liberdade de escolha, quer de novos sistemas de financiamento das funções sociais. No entanto, qual é a posição do PSD sobre, por exemplo, a liberdade de escolha na Educação? E a do PS? E o que pensam esses partidos de seguros de saúde inspirados no modelo da ADSE? Nada. Quando muito pensam o que pensa o responsável do momento para essa área. O mesmo podemos dizer de 99% dos comentadores que enxameiam o espaço público. Todos pedem a "reforma do Estado", ninguém diz o que entende por isso. Por medo, por ignorância ou por conformismo.
Numa democracia menos histérica do que a nossa não estaríamos a discutir o "consenso". Ou pelo menos não discutiríamos o consenso pelo consenso. Estaríamos, isso sim, a negociar e a tentar chegar a acordos equilibrados. Os partidos negociariam a partir de posições que lhe conheceríamos com antecedência. Cederiam numas coisas, ganhariam noutras. Fariam compromissos algures a meio caminho porque conheceriam o seu ponto de partida. Mas não. O único ponto de partida dos partidos portugueses é o de agradarem ao maior número possível de eleitores, por isso tudo o que aceitarem em tempos difíceis será para eles uma perda. De votos. E depois de lugares.
Neste quadro, o "consenso" acaba facilmente por se transformar na razão de dissenso. Basta pensar no discurso do Presidente. Antes de começar a falar, as bancadas da maioria tremiam de ansiedade; quando começou a falar, percebeu-se que, sempre que dava uma no cravo, acrescentava outra na ferradura, mas só estas eram recebidas com palmas; no final, as palmas de uma maioria antes ansiosa tinham irritado a tal ponto o PS que este decretou o fim do "consenso" exactamente quando o Presidente o tentava. E este, que enviara recados em todas as direcções, ainda não deve ter percebido bem o que lhe aconteceu.
Tudo isto mostra até que ponto a retórica do "consenso" é antes de tudo o mais fruto de tempos que mais propriamente poderíamos chamar de "sonsenso". Ou de sonsice.

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