Crivelligate, a conclusão

João Miguel Tavares Público 13/06/2013

Cenas dos últimos capítulos, para quem não tem acompanhado esta frenética série: o Estado português permitiu a exportação de um quadro do pintor italiano renascentista Crivelli. Os especialistas indignaram-se. Eu defendi (texto de há oito dias) que o quadro é propriedade privada e que, se o Estado o queria, tivesse pago por ele. Os especialistas voltaram a indignar-se. Eu defendi (texto de há dois dias) que a actual lei do património tem alíneas abusivas e discricionárias. Até à data, os especialistas ainda não se indignaram. Mas eu regresso ao tema na mesma para cumprir uma última promessa: demonstrar como a invocação do sempre florido interesse nacional e a sua sobreposição aos horríveis interesses privados pode ser altamente contraproducente.
É por isso, aliás, que este caso é tão interessante - olha-se para Crivelli e vê-se Portugal. A pátria faz leis bonitas, mas esquece-se com frequência (ou faz por se esquecer) dos seus efeitos indirectos. Efeitos como este: se eu amanhã descobrisse um estupendo Piero della Francesa escondido no sótão do meu tetravô, e o quisesse vender, faria tudo por o esconder do Estado português. Se fosse bater à porta do Museu Nacional de Arte Antiga, o quadro poderia certamente ser exposto e admirado, e eu poderia até ser condecorado por altos serviços à pátria. Mas não tendo o país dinheiro para mandar cantar um cego (vai tudo para os buracos dos swaps e do BPN), o mais certo era classificarem a obra como de interesse nacional e não ma comprarem. E lá teria eu de telefonar ao Pais do Amaral.
Essa questão, aliás, não é de agora: na década de 70, os próprios proprietários do quadro de Crivelli resistiram a enviá-lo para restauro num instituto público, receando precisamente a sua inventariação e posterior classificação. Actos que, para todos os efeitos, e a partir do momento em que não existe a obrigatoriedade de exercer o direito de compra, funcionam como um sequestro de propriedade privada pelo Estado. Eu não sou um especialista nesta matéria, mas quando algumas pessoas do meio enchem a boca com as semelhanças entre a lei portuguesa e tantas outras, gostaria imenso de saber quantas dessas "tantas outras" não estabelecem prazos bem definidos para o Estado se chegar à frente com o dinheiro.
É isso - e só isso - que está aqui em causa: o Estado português não age como uma pessoa de bem. E como não age como pessoa de bem, está mais sujeito às pressões dos poderosos e à discricionariedade dos critérios de quem decide, neste domínio como em tantos outros. Em 2005, já a actual lei do património estava em vigor, a famosa pintura de Canaletto O Bucintoro no Molo no Dia da Ascensão foi vendida em Londres por 16,8 milhões de euros pela família Champalimaud. Fui eu que estava a dormir e perdi a onda de comoção nacional? Porque é que o Estado permitiu a saída desse quadro de Portugal?
E, já agora, porque é o Governo não classifica, de uma vez por todas, a colecção Berardo, acabando com as constantes e irritantes ameaças do comendador Joe de a levar para fora do país? Acaso temos por aí Picassos, Magrittes, Pollocks e Warhols aos pontapés? Um raciocínio semelhante em relação ao senhor Calouste: haveria museu na Avenida de Berna, se a França tivesse feito à colecção Gulbenkian o que tanta gente está cheia de vontade de fazer ao quadro de Crivelli? Pois é. O Estado que se entretenha com o seu património - do qual nem sequer consegue cuidar - e deixe os privados em paz.

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