Defender a escola pública? Não seguramente com esta greve

José Manuel Fernandes, Público, 14/06/2013 - 00:00

Os professores não terão de dar mais aulas e tiveram garantias quanto à mobilidade especial. Mas mantiveram a chantagem
Na próxima segunda-feira uma parte dos estudantes que se levantarem para realizar o exame de Português do 12º ano fá-lo-ão sem ansiedade acrescida. São aqueles em cujas escolas os exames decorrerão naturalmente, sem sobressaltos. As escolas privadas. Não porque os seus professores tenham melhores condições salariais ou mais garantia no emprego do que os seus colegas das escolas públicas - por regra, é o contrário que acontece. Mas porque o sector privado não costuma ser afectado por este tipo de greves. As greves dos sindicatos das escolas públicas afectam as escolas públicas e prejudicam, antes do mais, os seus utentes. Os seus alunos. Os que não têm meios para frequentar outras escolas senão as do Estado.
Mesmo que tivessem razão em todas as suas reivindicações, os sindicatos e todos os que enchem a boca com proclamações em defesa da escola pública deviam meditar uns segundos nestes factos simples. Mas não o fazem. Porque, no fundo, o que preocupa mesmo os sindicatos não é a escola pública, a sua qualidade, o progresso dos seus alunos. O que os mobiliza são os empregos públicos dos seus filiados. E também os objectivos políticos das suas centrais sindicais. Se dúvidas houvesse, bastaria ouvir os dirigentes da FNE depois da última ronda negocial, aquela em que o ministério de Nuno Crato foi ao encontro de quase tudo o que pediam: mantinham a greve, apesar do recuo governamental, mesmo arriscando-se a "defraudar as expectativas dos professores", porque afinal o que queriam era o mesmo recuo para todos os restantes funcionários públicos. Palavras de João Dias da Silva.
Em 2005, no tempo do Governo de Sócrates, escrevi neste mesmo jornal que uma greve aos exames nacionais significava uma "cruel chantagem". Faço hoje a mesma avaliação. Não porque negue aos professores o direito a fazerem greve, mas por considerar que existem limites éticos ao exercício desse direito. Eu, por exemplo, nada digo contra a greve às avaliações, apesar de ser uma greve fácil - basta um de dez professores faltar ao conselho de turma para este não se realizar - e de também ela criar instabilidade entre os alunos. O dano, nesse caso, não é irreversível. Já com os exames nacionais, sobretudo com os exames nacionais de 12º ano que são determinantes no acesso ao ensino superior, é diferente. Considerar que eles são uma "necessidade social impreterível" é lógico, justo e razoável, como de resto tinham considerado o Supremo Tribunal Administrativo em 2007 e o Tribunal Constitucional em 2009. Mas agora não o considerou o juiz que presidiu ao tribunal arbitral. O juiz que fez tombar a decisão para o lado sindical.
Dei-me ao trabalho de ler o acórdão, o que infelizmente muitos não terão feito. E devo dizer que fiquei boquiaberto. É que nele reconhece-se que "a realização destes exames é o ponto crucial de todo o processo educativo", pela que a sua não realização poderá ter "consequências devastadoras". Como se consegue então a proeza de não decretar serviços mínimos? Considerando que, como só está marcado um dia de greve, as provas desse dia podem ser transferidas para outro dia. Não deixa de ser um argumento extraordinário, até por já estar marcado um outro dia de greve, a 27 de Junho. E por nada garantir que os sindicatos, obtido este ganho de causa, não pudessem marcar novas greves, seguindo o balanço dos pré-avisos que a Fenprof já entregou para a greve às avaliações. Se o Governo aceitasse os princípios implícitos nesse extraordinário acórdão, entregaria aos sindicatos, agora e no futuro, o poder de decidir da realização ou não de exames nas datas previstas e deixaria às comissões arbitrais o poder de escolher datas alternativas. Compreendo por isso que Nuno Crato tenha optado pelo risco do braço-de-ferro: depois de ter oferecido aos sindicatos tudo o que podia oferecer (despacho já publicado a manter as 22 horas lectivas; medidas para tentar evitar casos de mobilidade especial; adiamento da entrada em vigor de algumas normas do novo regime), e estes terem recusado tudo numa reunião em que não apresentaram sequer propostas alternativas, que mais podia fazer? Só se entregasse o governo da 5 de Outubro ao sr. Mário Nogueira...
Se os sindicatos estivessem realmente empenhados na defesa da escola pública - melhor: na defesa de um sistema de ensino de qualidade e para todos, ricos ou pobres -, não estariam entrincheirados na defesa de interesses corporativos, mesmo que mascarados com belas palavras sobre a condição docente e a "motivação" dos docentes. Até porque quem se interroga seriamente sobre o que fazer para melhorar as escolas portuguesas chega inevitavelmente a uma conclusão: é necessário que elas tenham mais autonomia de gestão e que as famílias tenham real poder para escolher as melhores e fugir das piores. Só na escola se podem tomar as melhores decisões sobre o que fazer para melhorar a aprendizagem dos estudantes, e isso está longe de ser possível: de acordo com o último relatório da OCDE, 78% das decisões são tomadas a nível central, um grau de centralismo que só tem paralelo na... Grécia.
De facto, como podem as escolas tomar as melhores decisões, se não podem escolher o seu corpo docente? Ainda a semana passada esteve em Lisboa, numa conferência na Gulbenkian, David Osborne, consultor da Casa Branca no tempo de Clinton e membro da equipa de Al Gore, que, ao explicar como se podia reformar o Estado, sublinhou a importância de pensar num novo tipo de escolas, focadas nos resultados. Escolas com autonomia para fazerem o melhor, não apenas para cumprirem instruções, escolas que sejam recompensadas pelos bons resultados (o mesmo sucedendo com os professores), mas que também sofram as consequências de não alcançarem os objectivos. Osborne falou-nos das escolas do século XXI, como as novas escolas de New Orleans, onde depois do furacão Katrina o sistema foi todo reconstruído, as regras mudaram radicalmente e os resultados, sobretudo entre os estudantes mais pobres, deram um enorme salto de qualidade.
Estes novos sistemas dão aos pais uma enorme responsabilidade na escolha das escolas, e mais poder às comunidades locais para organizarem o seu trabalho -o que pode ter várias consequências. Uma é as escolas más poderem ser obrigadas a fechar, não por ordem da 5 de Outubro, mas por ficarem sem alunos. Antes, mesmo dentro do sistema público, as escolas teriam de conseguir atrair os seus estudantes, e para isso necessitariam de poder contratar directamente os professores, e dispensá-los quando tal se justificasse. E poderiam criar prémios de desempenho, indexados ao progresso dos alunos e que não tivessem de obedecer às regras do "estatuto da carreira docente".
Boa parte dos países mais desenvolvidos, incluindo os que têm o Estado social mais forte, estão a evoluir, com bons resultados, nesta direcção. No processo, os sindicatos perdem poder de chantagem. Mas as famílias conquistam um protagonismo que hoje lhes é negado. E os bons professores ganham razões para ficar satisfeitos e realizados. Já os Mários Nogueiras deste mundo é que deixariam de ser classificados com "Bom" na escola onde não dão aulas há 20 anos.
Se queremos falar de defesa do ensino universal e democrático, de qualidade e para todos, de escola pública no sentido nobre do serviço público, então é destas novas soluções que devíamos estar a falar. Não da defesa da ideia reaccionária de que um professor, desde que efectivo, tem lugar para sempre nem que não tenha alunos, ou que sirva mal esses alunos.
Os professores não são os únicos cidadãos que estão assustados. Mas sequestrar os exames não é apenas atingir quem não tem culpa do que se está a passar: é comprometer a defesa de um sistema de ensino mais justo, ao serviço dos estudantes e das famílias, não dos professores do quadro.
P.S. - Ao convocarem-se todos os professores para o serviço de exames apenas se garante que o dano máximo (não se realizarem provas) corresponde à mobilização máxima (não bastará alguns professores fazerem greve, terão de fazer a esmagadora maioria). Significativamente os sindicatos, que até então tinham fechado a porta a tudo, pediram de imediato mais negociações.

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