A raiz do mal

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-07-08

Pelos jornais, a crise é o inferno. O debate político atingiu tal violência que se acusam políticos, banca, Alemanha ou Comissão dos propósitos mais sinistros. Todos se vêem como vítimas inocentes de monstros malvados. Nem param para pensar que interesse teriam os ministros em destruir o Estado social ou Merkel em arruinar o Sul da Europa. São simplesmente malignos.
Esta atitude é apenas um de muitos casos em que hoje se apontam pessoas como demónios. Nas discussões acerca do ambiente, feminismo, racismo e outros problemas, é normal aparecer esta insólita visão de um mal radical ameaçando inocentes.
O ser humano sempre lidou mal com o mal. O mistério da iniquidade é um grande enigma. Penas e sofrimentos são uma constante da vida, mas paradoxais e incompreensíveis. A resposta natural que a humanidade sempre deu é identificar uma força perversa original que nos influencia a todos. Diabo, Satan, Mara, Set, Angra Mainyu são nomes, entre outros, da verdadeira origem do mal de que todos os homens são vítimas.
Esta tese negativa torna-se saudável e equilibrada se junta com dois outros postulados. O primeiro é que eu, como todos, estou sujeito à tentação e por isso não sou inocente. O segundo é que o mal pode ser vencido; aqui o caso extremo é o cristianismo, em que a paixão de Jesus foi a sua derrota definitiva. A conclusão é que o verdadeiro campo de batalha entre o bem e o mal é não a política e a sociedade mas o meu coração. Pelo contrário, o esquecimento destes postulados traz o mal ao nosso nível, identificando o demónio com certa pessoa ou grupo. Isso gerou os piores erros da humanidade, da caça às bruxas à perseguição dos judeus.
Mas o Humanismo renascentista e Iluminismo setecentista recusaram a transcendência do mal como incompatível com a dignidade humana. O pecado original foi rejeitado por razões ideológicas. Assim, os últimos séculos não consideram a possibilidade de Satanás, mesmo se têm dúvidas da existência de Deus. O resultado é que o mal concreto se tornou um mistério ainda mais profundo. Como é possível o ser humano, tão digno, comportar-se de forma tão abjecta?
Para responder a isto, a cultura contemporânea criou explicações alternativas, as quais tornam o mal concreto e próximo. Assim o demónio mudou-se para o prédio ao lado ou, como Sarte explicou, "o inferno são os outros" (1944, Huis-clos). Um dos casos mais influentes foi a teoria da luta de classes. Aí o monstro é o capitalista, não por ser má pessoa, mas por simples mecânica sociológica. Outra alternativa são as teses eugénicas, identificando raças superiores e desprezíveis, atribuindo os males às segundas.
As teorias da luta de classes e do sub-humano não são criações de mentes distorcidas mas simples explicações plausíveis para crises socioeconómicas. Marx nos anos 1850 e Hitler nos 1930 viveram enormes choques produtivos, transformações da economia mundial gerando instabilidade, incerteza, dor e desigualdade. O sofrimento era evidente e era preciso encontrar causas. Capitalistas e judeus foram, em ambos os casos, convenientes personificações do demónio. Mas desta humanização do diabo resultaram os terríveis horrores do século XX, do holocausto ao Gulag, muito piores que as antigas barbáries.
O fanatismo simplista das ideologias abrandou mas, continuando sem resposta cabal para o irredutível mistério do mal, hoje repetem-se os erros. Nas questões familiares, religiosas, sociais, surgem novos demónios. Mas, de novo, o pior é o debate económico, onde a globalização e a sociedade da informação renovam os choques produtivos. Os tumultos na Suécia, Turquia, Brasil mostram animosidade crescente.
Como o Humanismo se recusa a aceitar a universalidade da tentação interior, cada um vê-se como vítima inocente e coloca a raiz do mal no inimigo que a ideologia identifica. As fúrias irracionais contra Passos Coelho, Angela Merkel ou Dilma Rousseff vêm desta recusa em sentir o mal em mim próprio, tomando o outro como demónio. Quem não acredita no diabo acaba vendo-o em todo o lado.

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