Os fogos florestais e o que comemos

HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS 

Público, 26/08/2013
É completamente errado perseguir a quimera inatingível de um Portugal sem fogos.

Há anos Portugal adoptou o slogan "Portugal sem fogos depende de todos" e há anos que o erro desse slogan persegue a política de gestão do fogo, com fortes custos sociais, e com um peso brutal para os contribuintes.
Não porque seja errado dizer que a gestão dos fogos depende de todos, isso é verdade. O que é errado, completamente errado, é perseguir a quimera inatingível de um Portugal sem fogos.
Portugal terá sempre fogos, como sempre teve, pelas mesmas razões que o fazem ser o maior produtor mundial de cortiça.
Portugal terá sempre fogos, como sempre teve, pelas mesmas razões que o fazem ser o maior produtor mundial de cortiça.
Há condições de solo e clima que são especialmente favoráveis à existência de fogos, muito mais favoráveis no noroeste da Península Ibérica (a Galiza concentra cerca de 50% de todos os fogos de Espanha) do que noutras regiões mais quentes e mais secas.
Estas condições de elevada produtividade primária (ou, para ser mais directo, onde os matos crescem muito), associadas a condições meteorológicas extremas em alguns períodos (80% da área ardida em Portugal ocorre em 12 dias no ano) são a base dos fogos que vamos tendo e que sempre teremos.
Há cinquenta, sessenta anos, no entanto, os fogos não tinham a dimensão e severidade que têm hoje, nem eram motivo de notícia, a não ser de forma muito esporádica.
Mas isso não quer dizer que todos os anos não ardesse uma grande área, quer apenas dizer que ardia de forma diferente, essencialmente em queimadas de pastores.
De então para cá o que mudou foi a forma de nos aquecermos e cozinharmos, passando da lenha para o gás, a forma de fertilizarmos a terra, passando do estrume da cama do gado para os fertilizantes químicos e a produção das áreas não agrícolas, passando da dominância da pastorícia para a dominância da florestação.
Do que precisamos é escolher o que arde, quando arde e como arde, porque teremos sempre de conviver com o fogo.
Ou seja, a tal produtividade primária, que sustentava a pastorícia e agricultura fornecendo mato como matéria-prima, passou a ser um problema da florestação que considera o mato como resíduo.
Ao transformar uma fonte de riqueza num custo de exploração criámos as condições para a sua acumulação, ou seja, regámos Portugal com combustíveis, esperando que nunca nenhuma ignição viesse a iniciar um fogo.
Fizemos até grandes campanhas para a redução das ignições, fingindo não saber que 90% da área ardida resulta de 1% das ignições, e que as áreas com maiores fogos não coincidem com as áreas com mais ignições.
O maior número de ignições está onde estão as pessoas, as maiores áreas ardidas estão onde faltam as pessoas e a gestão do território.
Ora é aqui que entra a responsabilidade de cada um de nós, quando deixamos de comer cabritos que valorizem a pastorícia ou quando escolhemos alimentos mais baratos, deixando sem competitividade as zonas mais difíceis (embora produtoras de serviços ambientais).
São as nossas opções alimentares quotidianas que determinam as decisões dos produtores de alimentos e fibras e que podem gerir o território de forma sustentável.
Não vale a pena pensar que exista economia que suporte as milhares de equipas de sapadores que seriam necessárias, em Portugal, para preparar o nosso país para arder sem que isso se traduzisse em perdas relevantes.
Por melhor que seja o trabalho dos bombeiros e da protecção civil (e na verdade é difícil que seja perfeito quando há uma gritante falta de conhecimento sobre o território e as suas relações com o fogos), é impossível ter Portugal sem fogos.
É sobejamente conhecido o paradoxo do fogo: cada êxito na supressão do fogo significa a continuação da acumulação de combustíveis que é a semente do fogo seguinte, mais extenso e mais severo por maior disponibilidade de combustível.
Do que precisamos é escolher o que arde, quando arde e como arde, porque teremos sempre de conviver com o fogo.
E se uma parte destas escolhas resultam em políticas públicas, outra parte, a maior, resulta das opções de consumo, em especial alimentar, que fazemos todos os dias.
Enquanto nos concelhos mais fustigados pelo fogo não vir as ementas das escolas, dos lares, dos quarteis de bombeiros, dos restaurantes, dos hospitais, a contribuir para sustentar as fileiras económicas que têm capacidade de gerir os combustíveis, não posso deixar de lamentar as perdas, em especial de vidas, que resultam dos fogos, mas continuarei a dizer que essas perdas são da minha e da tua responsabilidade, de mais ninguém.

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