Mas será que não leram o acórdão do Tribunal Constitucional?

Público, 06/09/2013

Apesar de embrulhados em fraseologia jurídica e constitucional, os argumentos do TC são sobretudo militantes e corporativos
Deve ser culpa de Agosto. É que se metade dos juízes do Tribunal Constitucional foi de férias na altura em que tinham de tomar algumas das mais importantes decisões do seu mandato, muitos dos que comentaram a sua mais recente decisão também não devem ter achado necessário dar-se ao trabalho de ler o acórdão sobre os despedimentos na administração pública. Só assim se compreende a quantidade de gente que tem vindo a pedir "respeito pelos juízes": é que lendo o acórdão percebe-se que foram os juízes que não se deram ao respeito.
Eu sei que é maçador. São umas dezenas de páginas de insuportável juridiquês, por vezes apenas de mau português, e que a sua leitura é tudo menos estival (sobretudo para um não-jurista, como eu), mas o que incomoda quem se der a esse trabalho é encontrar mais depressa sinais de um activismo corporativo do que a expressão de uma decisão serena e ponderada. Muita gente ficou abespinhada por o primeiro-ministro ter defendido que nestas alturas devia haver bom senso - eu acho que ele só pecou por defeito na sua crítica à decisão.
Já muito foi dito, e bem dito, sobre a contradição insanável entre a exigência de equidade entre trabalhadores do sector público e trabalhadores do sector privado, formulada pelo Tribunal quando declarou inconstitucionais normas orçamentais que diminuam a remuneração dos funcionários públicos, e esta sua decisão em que argumenta poder haver despedimentos nas empresas privadas mas não se poder despedir nenhum dos funcionários públicos contratados antes de 2008, ou seja, a sua esmagadora maioria. O que não vi ainda referido foi que o acórdão passa por cima desta contradição de forma cínica, para não dizer com má-fé.
Com efeito, a certa altura, argumenta-se que se os trabalhadores do sector público "viram ser-lhes impostas pelo Estado medidas de redução remuneratória nos anos de 2011, 2012 e no ano em curso de 2013, com motivação que assentou no benefício de maior estabilidade no emprego", então não se pode agora questionar a "expectativa especialmente forte na preservação em concreto desse regime de excepção e na força do reduto defensivo que lhes havia sido reconhecido por instrumento legal". Lê-se e não se acredita: então o mesmo tribunal que impediu o prolongamento no futuro dessas reduções remuneratórias vem invocá-las como se ainda existissem e, por isso, justificassem a excepção de não haver despedimentos? É frequente indignarmo-nos com o cinismo e desfaçatez de alguns políticos - neste caso só podemos indignar-nos com o descaramento destes juízes.
Mais: como classificar a hipocrisia do presidente do Tribunal que, em conferência de imprensa, disse que o resultado da decisão não era a proibição de despedimento de funcionários públicos, e que "o que se diz é que não pode ser por este meio", quando a decisão proíbe de facto o despedimento de todos os contratados até 2009, os únicos sobre os quais havia dúvidas, pois os restantes, que são comparativamente muito poucos, já tinham contratos individuais de trabalho?
O que os juízes fizeram, e isso é especialmente grave, foi dar, na prática, dignidade constitucional à lei de 2008 sobre as carreiras na administração pública. De facto a nossa Constituição não trata a segurança do emprego na administração pública de forma diferente daquela que trata o emprego no sector privado, pelo que os juízes tiveram de fazer malabarismos para imporem a iniquidade de uns trabalhadores poderem ser despedidos - e há centenas de milhares que o foram, muitos porque as empresas não suportaram as subidas de impostos tornadas necessárias para pagar a todos os funcionários públicos inamovíveis - e outros terem empregos sacrossantos. Ou seja, a Constituição não impedia que o Tribunal tivesse permitido a revogação de um artigo de uma lei com cinco anos, pois era isso que estava em causa. Bastava que os juízes fossem coerentes e mantivessem a defesa do princípio da equidade, que tanto invocaram há uns meses, em vez de o trocarem pelo princípio da confiança, agora brandido para eternizar um privilégio corporativo de que os próprios juízes beneficiam. E eles, como se sabe, não se incomodam muito com privilégios corporativos, pois ainda não deram sinais de estarem incomodados com o escandaloso regime de pensão de reforma ao fim de dez anos de serviço de que beneficiam.
Há porém uma possibilidade de se entender melhor o que vai na cabeça dos senhores juízes. É a possibilidade de eles não terem vivido em Portugal nos últimos anos ou então terem acabado de aterrar vindos de Marte e nada saberem do que se passa no nosso país. Bem sei que é uma possibilidade estranha, mas é a única que torna possível entender outro dos pontos da argumentação do acórdão: a de que não se conhecem os motivos pelos quais o Governo quer diminuir o número de funcionários públicos. É realmente um mistério. Portugal nem está intervencionado, a dívida pública nem vai em 131% do PIB (168,3% se considerarmos o conjunto do sector público não financeiro), aquele mesmo tribunal até nem impediu que se reduzissem as despesas com salários cortando nos vencimentos, o país nem tem 900 mil desempregados. Nenhuma destas coisas é do conhecimento dos juízes, e por isso eles sentiram a falta, talvez no preâmbulo da lei, de umas frases a dizer que havia uma crise e que a nossa realidade já era bem diferente da de 2008. À falta dessa frase, chumba-se a lei. Eu não acharia possível este tipo de raciocínio se não tivesse lido o acórdão.
Claro que há outra hipótese. No Palácio Ratton ninguém se preocupa com essa coisa comezinha que é haver ou não dinheiro ao fim do mês. Os juízes são insignes juristas, não desqualificados economistas (muito menos donas de casa preocupadas com a contabilidade doméstica), por isso não se deixam comover com um terreno deve e o haver. Socorro-me de novo do acórdão em defesa desta hipótese. Ora leiam lá esta passagem: "a Constituição (...) não consente, pois, que o legislador confira ao empregador público (...) a capacidade primária de concretizar os critérios normativos da requalificação por razões orçamentais". Exacto: as razões orçamentais não contam. Mesmo que não haja dinheiro para manter um serviço a funcionar, o Estado não pode enviar os seus funcionários para a requalificação. Porquê? Porque ater-se a razões orçamentais seria dar ao Estado o poder de "definir e criar livremente os próprios pressupostos da actuação que conduz ao despedimento". Ou seja, na cabeça dos juízes, se não há dinheiro a culpa só pode ser do Estado que quer despedir, não de não haver riqueza suficiente para cobrar ainda mais impostos. Até porque cobrar mais e mais impostos, como já vimos em decisões anteriores do Tribunal, é coisa que não os incomoda.
Apetecia-me continuar com mais umas pérolas retiradas do acórdão, mas o texto já vai longo e falta recordar o essencial: se o Estado não pode diminuir os salários aos seus funcionários, como já aconteceu em tantas e tantas empresas privadas; se também não é possível reduzir o número de funcionários; e se, a par com os gastos em salários, a outra grande factura no bolo da despesa pública são os gastos com pensões e com saúde, então torna-se claro que o activismo corporativo dos juízes vai acabar por sair caro aos portugueses. Com a dívida nos níveis a que está, e com um Estado que continua a ter défice e, portanto, a endividar-se mais e mais, é cada vez maior a dificuldade em encontrarmos credores que nos emprestem mais dinheiro sabendo que também é cada é maior a possibilidade de um dia não pagarmos a dívida toda. O que o Tribunal Constitucional disse a esses credores é que, face aos privilégios relativos dos funcionários públicos, lhe é indiferente o destino do dinheiro que nos emprestam. Esperar que os credores nos tornem, por causa desta decisão, a vida mais fácil não é apenas ingenuidade, é estupidez.

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