O olho e o argueiro

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-10-21


Nos EUA, o país mais rico e poderoso de sempre, o Estado paralisou devido a zangas parlamentares. Este caso insólito exige uma reflexão acerca dos debates cívicos, lá como cá. O interesse vem precisamente de o caso ser tão inacreditável. Que num país rico e sofisticado uma raiva de políticos leve à subversão da sua própria missão política é ultrajante. Pior quando o tema é o indispensável sistema nacional de saúde, que todos os países civilizados têm, e na América é obviamente disfuncional.
Isto pode ser interpretado de várias formas. É possível tomar o impasse aberrante como prova das nossas embirrações de estimação, confirmando a tolice de políticos ou americanos, teimosia de neoliberais ou intervencionistas, decadência da cultura ocidental ou podridão capitalista. Mas também se pode olhar de forma positiva. Em qualquer assunto é decisivo, não apenas o que acontece, mas a forma como o encaramos, pois tudo é passível de interpretações variadas.
Este problema incrível nasce de um defeito da democracia que, apesar disso, se mantém muito superior às alternativas. Coisas destas não acontecem no unanimismo das ditaduras ou no caos das anarquias, mas aí tudo é pior. Os EUA têm estes dramas patéticos precisamente porque vivem numa sociedade desenvolvida, plural e sofisticada.
Além disso notamos que Portugal e a nossa classe política, afinal, não são assim tão deficientes. Países ricos e poderosos, como EUA ou Itália, vivem situações mais anómalas e ridículas. O nosso derrotismo deduz calamidades de cada obstáculo, mas a verdade é que problemas grotescos todos têm e, apesar dos terríveis sofrimentos, os nossos até se vão resolvendo com alguma elevação e ligeireza.
Isso não nos deve descansar, mas também não nos pode desanimar. É verdade que os EUA já tiveram uma sangrenta guerra civil, como Portugal viveu épocas de tumulto e decadência. Tais dramas podem regressar, e as perturbações recentes tornam-nos mais próximos. Mas perante a terrível pressão dos acontecimentos e com fortes discussões e conflitos, os nossos dois países avançam sem a violência, motins ou derrocada institucional que destroem outras paragens. Dada a indiscutível gravidade das crises, isso tem de ser muito positivo.
Um último passo, que também depende crucialmente da forma como decidimos enfrentar a situação, está no esforço para compreender a posição adversária. O bloqueio norte--americano, como os debates da austeridade portuguesa, nascem da obstinação em recusar a parte de verdade que o outro lado possui; mesmo se difícil de compreender. O sistema de saúde de Obama tem evidentes vantagens, que os republicanos extremistas omitem, enquanto os democratas radicais ignoram as preocupações económicas dos oponentes. Por cá as altercações à volta do Orçamento estão eivadas de igual tacanhez. Muitos acusam levianamente o Governo de maldade ou incompetência, enquanto alguns governantes consideram subversão e terrorismo as críticas compreensíveis. Os ânimos andam exaltados e qualquer declaração substantiva recebe enxurradas de ataques e insultos, interpretando--a de maneira agressiva, atribuindo-lhe intenções torpes e mentecaptas. Até um artigo de opinião como este. Mas a grande maioria dos intervenientes, aqui como nos EUA, são pessoas honestas e serenas, cordatas e bondosas, que se zangam por verem lados diferentes em questões difíceis e intrincadas.
O mundo é grande, variado, complexo e ambíguo. Por isso pode ser considerado de formas muito diferentes, até opostas. É comum a tentação de sublinhar o negativo, assumir medos e ameaças, promover discórdias e confrontos. Mas a realidade, pelo simples facto de permanecer, é boa e positiva. Apesar de todos os riscos e falhas, cada dia, precisamente por ser, mostra o bem superior ao mal. Podemos procurar a face luminosa e unificadora, ou apostar na sombra e divisão. Podemos acusar os opositores, ou tentar compreendê-los. Tudo isso se deve, não à realidade, mas à forma como olhamos a realidade. Cada um define-se pelo lado que escolhe.

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