Para além do nevoeiro das autárquicas

Público, 04/10/2013

As leituras nacionais não deveriam ofuscar algumas singularidades visíveis em 308 eleições municipais
Não houve nem há lugar a dúvidas: no passado sábado o PSD sofreu uma derrota pesada nas eleições autárquicas e o PS, apesar de ter perdido votos e descido em percentagem, foi o indiscutível vencedor. Esta leitura nacional dos resultados não deve, contudo, levar a que nos esqueçamos que nessas eleições os portugueses elegeram os seus novos presidentes de câmara e presidentes de junta e que foi a pensar nos diferentes candidatos que a maioria dos eleitores fez a sua opção de voto. Eu sei que havia quem quisesse que os eleitores votassem como se estivessem apenas a participar numa espécie de mega-sondagem sobre o Governo que temos, mas lamento desiludir os que assim gostariam de reduzir a democracia a uma caricatura: a opinião que os portugueses têm sobre o seu Governo foi apenas um dos factores que pesaram no voto, e tudo indica que não foi o que pesou mais, apesar do alegado "ódio" que o povo nutrirá por Passos Coelho.
A dimensão da derrota do PSD é semelhante às que o mesmo partido sofreu em 1989 e 1993 (era Cavaco Silva primeiro-ministro) e à que o PS teve em 2001 (quando António Guterres se demitiu). Todas essas derrotas se notabilizaram pela perda das mais importantes câmaras e por descidas acentuadas do score eleitoral. O PSD e o CDS em conjunto perderam cerca de 15 pontos percentuais, quando comparamos a sua votação no domingo com a que tiveram nas últimas legislativas, em 2011. Ou seja, como notou Pedro Magalhães no blogue Margens de Erro, perderam sensivelmente o mesmo que o PSD de Cavaco Silva perdeu em 1989 e em 1993. O PSD também perdeu o Porto, Gaia e Sintra, três dos maiores concelhos do país, mas isso não é pior do que sucedeu ao PS em 2001, quando perdeu Lisboa, o Porto, Sintra e Cascais.
Independentemente da motivação "vamos lá castigar o Passos", que existiu e que já discutirei, as eleições de domingo parecem confirmar a existência de ciclos de 12 anos no poder autárquico. Em 1989 terminou um primeiro ciclo, que havia sido dominado pelo PSD, e iniciou-se um ciclo do PS, que durou até 2001. De então para cá vivemos de novo 12 anos de hegemonia do PSD, iniciando-se agora uma era de maioria PS que veremos quantos anos durará. É possível que a nova lei de limitação de mandatos até venha a tornar mais claros estes ciclos alternantes de três mandatos autárquicos.
A abstenção em eleições autárquicas sempre se situou em patamares relativamente elevados, na casa dos 40%. Desta vez ultrapassou os 47%. Trata-se de um salto demasiado brusco para poder ser explicado apenas por um desfasamento dos cadernos eleitorais ou pelo aumento da emigração nos últimos dois ou três anos. Ora sucede que olhando para os resultados com mais detalhe verificamos que esse aumento não ocorreu de forma homogénea em todo o território, nem incidiu especialmente em áreas de maior influência do PSD e do CDS, assim sinalizando um maior castigo desses dois partidos. A abstenção, desta vez, foi um fenómeno urbano, ou sobretudo urbano, e castigou todos os partidos do arco da governação.
Na maior parte dos concelhos a abstenção subiu, mas as maiores subidas foram nos concelhos urbanos, mesmo naqueles concelhos onde o resultado das eleições era incerto e, por isso, maior o apelo ao voto. Em alguns concelhos urbanos (como Sintra) a abstenção foi também muito maior nas freguesias-subúrbio do que nas freguesias mais rurais.
O que pode explicar este comportamento diferenciado dos eleitores? Uma primeira explicação residirá na maior proximidade existente entre autarcas e munícipes nas zonas rurais. Nas pequenas localidades haverá uma percepção mais clara do que faz ou não faz o presidente da câmara ou da junta, e por isso as populações alheiam-se menos da sua escolha.
Outra explicação, que não deve ser ignorada, é a de, nas áreas urbanas, a politização ser maior e, por isso, também maior o desejo de penalizar a actual maioria. Isso aconteceria muito por via da abstenção: os eleitores do PSD e do CDS, zangados, teriam ficado em casa. Esse fenómeno aconteceu em larga escala, mas não afectou só os partidos da maioria, também terá penalizado o PS, quer em concelhos que perdeu (Cascais, Guarda, Loures), quer em concelhos onde ganhou com resultados muito abaixo do que se esperaria (Sintra).
O que esta abstenção parece mostrar é que nos concelhos mais urbanos os partidos do Governo perderam muito, mas o PS ou recuperou pouco ou até também recuou. Isto pode ser um sinal de desafectação com os três partidos da governação (juntos tiveram pouco mais de 70% dos votos, o pior resultado de sempre), um sinal que não deve ser ignorado. Mais: o total de votos em branco e de votos nulos (essa foi a opção de quase sete em cada 100 eleitores) reforça a convicção de que muitos portugueses não estão apenas desinteressados, estão é suficientemente descontentes e zangados para terem saído de casa num dia chuvoso apenas com o objectivo de entregarem boletins de voto que são uma espécie de manifesto contra todos os candidatos.
Neste quadro, será que a vitória de Rui Moreira no Porto nos abre novos caminhos com novos protagonistas? E que os bons resultados de outras listas de cidadãos são janelas de esperança? No Porto, por exemplo, o avanço da abstenção foi bem menor do que em Lisboa e houve também proporcionalmente muito menos votos em branco e nulos...
De novo é necessário ser cuidadoso na análise. Como já foi assinalado pelo PÚBLICO, a maior parte das listas de independentes eram, na realidade, listas de candidatos preteridos pelos partidos, listas de militantes ou ex-militantes que tinham entrado em choque com o aparelho. Depois, a verdade é que das 13 listas de cidadãos que venceram eleições para câmaras municipais, só dois dos candidatos que as encabeçavam não tinham antes sido autarcas eleitos em listas de partidos: Rui Moreira no Porto e António Matos Recto no Redondo (e mesmo este último já era antes autarca, mas eleito numa lista de independentes). Ou seja, a alegada "renovação" pela mão de independentes teve um impacto reduzido e a maior parte dos candidatos nem era novo, nem era tão independente como isso.
Não faço parte do coro dos que acham que todos os nossos males estão na classe política, e ainda menos da claque de demagogos que anda por aí a gritar que os que servem em funções públicas só estão lá para se servirem, sobretudo se não forem da sua cor política. Pelo contrário. Acho até extraordinário como tantos milhares de portugueses se dispuseram a candidatar-se a estas eleições mesmo sem a esperança de grandes, se algumas, recompensas económicas. Por isso não posso deixar de assinalar que, apesar de tudo, estas eleições também nos mostraram que os partidos continuam a ser os grandes organizadores da vida política e que, se souberem ler os resultados, se perceberem como muitas vezes foi a lógica dos militantes e do aparelho que os perdeu, talvez possam encontrar novas formas de irem ao encontro da cidadania e de revitalizarem a democracia. A possibilidade de a escolha dos seus futuros candidatos passar a ser feita em primárias abertas aos eleitores é um caminho que podiam explorar, até de forma descentralizada e experimental.
O importante é que os vencedores e os vencidos percebam também que o grau de desafectação dos eleitores já atingiu níveis preocupantes. A crise e os dias difíceis, que não desaparecerão de um dia para outro, seja quem for que estiver em São Bento, vão continuar a manter a pressão sobre o sistema. Não há em Portugal, por enquanto e felizmente, políticos ou forças extremistas capazes de explorarem o mal-estar existente. Mas nunca se sabe como será o dia de amanhã.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António