Sonhos revolucionários

ALBERTO GONÇALVES
DN 2013-10-20

Primeiro, o Governo deixa escapar a notícia do saque às pensões das viúvas. Depois, fingindo-se zangado, o Governo faz o anúncio oficial: o saque limita-se a três por cento das beneficiárias. Por fim, desvenda-se o Orçamento e instala-se a confusão acerca da percentagem do saque. Entretanto, cem por cento dos socialistas outrora inquilinos de Belém imitaram uma cantilena em voga e apelaram à insurgência das massas.
Evidentemente, o apelo não foi explícito. Jorge Sampaio, no estilo críptico que desenvolve há sessenta anos, ofendeu-se sobretudo com o desrespeito do sagrado Tribunal Constitucional e pediu "um assomo patriótico", o que quer que isso seja. Mário Soares falou dos "delinquentes" no poder e confessou temer que "o ódio do povo se torne violento", formulação que numa cabeça matreira e pouco sofisticada significa que espera com impaciência a sublevação das massas.
Não pretendo defender as aventuras dos Drs. Coelho e Portas, de facto próximas do grotesco. Porém, é esquisito que alguns dos nossos mais celebrados democratas tenham uma visão peculiar da democracia, maravilhosa quando aclama os nossos, detestável quando premeia os restantes. Se não estou em erro, o Governo em funções resultou de uma escolha dos cidadãos, chamados a votar em eleições livres e justas. O Governo é mau? É, sim senhor, embora por não cortar onde devia e não pelos motivos que o Dr. Soares e o Dr. Sampaio sugerem. O Governo é ilegítimo? Não é, não senhor, excepto na opinião de criaturas como o Dr. Soares e o Dr. Sampaio, para quem a legitimidade advém da coincidência entre os titulares dos cargos e as suas simpatias pessoais. Simular preocupação com a "pátria" ou o "povo" para tentar impor as simpatias é estrategicamente compreensível. Mas é também uma trapaça.
Não me lembro de ouvir o Dr. Sampaio reclamar "assomos" enquanto o Governo anterior inscrevia a pátria na sopa dos pobres europeia. E sou capaz de jurar que, nesses gloriosos tempos, nunca o Dr. Soares avisou para os riscos da plebe indignada. A verdade é que ambas as alminhas citadas representam com brio o ramo do pensamento filosófico lusitano segundo o qual a "direita" (ou o que em Portugal passa por direita) moralmente não merece mandar. Se o povo real e bruto decidiu assim, há que imaginar um povo iluminado capaz de decidir assado e correr com a "direita" à bordoada.
Por enquanto, trata-se apenas da imaginação de dois antigos presidentes da República, felizmente para nós e, no fundo, felizmente para eles: nem sempre a fúria popular pendura uma comenda no pescoço dos respectivos instigadores. Às vezes, limita-se a uma corda.

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