A Justiça, o filho do bandido e a falta de venda

Henrique Monteiro
Expresso, Sexta feira, 8 de novembro de 2013
Tudo o que em Portugal diz respeito à Justiça está inquinado. Ontem, o meu homónimo vizinho de página Henrique Raposo escreveu ' O caso do GNR que matou o filho do bandido ' e eu prometi-lhe que iria discordar dele, embora concordasse com outros pontos que ele levanta. Vejamos no que concordo e no que discordo.
Nove anos de prisão para o polícia é uma sentença que só pode ser considerada excessiva tendo em conta o nível das penas normalmente aplicadas em Portugal. Matar uma criança é um crime grave. Mas acontece que o agente não saberia que ela se encontrava dentro de uma carrinha que o tentara atropelar e que fugia dele e de um colega, autoridades investidas pelo Estado, que o perseguiam depois de o fugitivo ter feito um assalto.
Ora um pai que leva um filho menor quando vai cometer um crime, como nota Henrique Raposo, torna-se corresponsável por tudo o que acontece. Ao receber uma indemnização de 20 mil euros pela morte do filho, sentenciada pelo Tribunal (exceção da presidente que votou vencida) ficamos com a noção de que a Justiça chega a ser patética.
Até aqui, não discordo em praticamente nada do meu homónimo. Mas segue-se a moral da história. Diz Raposo que antes do 25 de Abril a Justiça tinha duas espadas e hoje tem duas balanças, por ter sido demasiado dura e ser agora demasiado branda e garantista, segundo compreendo.
Ora eu penso que o mal da nossa Justiça não é ser branda, é ser errática. As sentenças variam consoante os juízes. O célebre juiz Rui Teixeira, do caso 'Casa Pia' e agora em Torres Vedras, foi alvo de um processo disciplinar ao não aceitar um relatório dos serviços prisionais por este ter sido escrito no novo acordo ortográfico. Rui Teixeira acha que no tribunal dele manda ele e que só ele pode dizer como se escrevem relatórios. O respetivo diretor-geral dos serviços prisionais fez queixa do juiz - e bem! - e agora corre um processo disciplinar. Ontem mesmo, a Relação do Porto condenou a três anos de prisão (com pena suspensa) um militar da GNR que disparou sobre um carro em fuga, matando um ocupante e ferindo outro. O mesmo militar, que fora absolvido na primeira instância, ainda será julgado por tentativa de homicídio sobre os outros ocupantes do mesmo carro. Ora pode haver motivos para a Relação do Porto entender que disparar sobre um carro, de que resulta um morto e um ferido, são três anos de pena suspensa, e em Loures a mesma coisa (com a agravante de o carro em fuga ter tentado atropelar o agente) resultar numa pena muito superior (o passado dos polícias, circunstâncias várias). Mas a Justiça não pode manter-se num pedestal de onde nada é explicado ao vulgo que olha, atarantado, estas e outras discrepâncias.
O facto é que não há rei nem roque na Justiça. Cada Juiz acha-se a si mesmo um órgão de soberania (confundido a sua pessoa com o órgão coletivo que é o tribunal) e apesar de muitos encherem a boca de democracia, não se lhes ocorre que a Justiça que fazem é em nome do povo e que o povo a tem de compreender para a respeitar.
O único padrão que as pessoas normais encontram no nosso sistema judicial é, infelizmente, este: quem tem dinheiro e recursos (por vezes, a falta de vergonha também ajuda) safa-se melhor. Eu diria, ao contrário de Henrique Raposo, que o problema não está em as duas espadas terem sido substituídas pelas duas balanças. O problema é que à Justiça caiu a venda. Muitos juízes julgam com preconceito, muitos têm histórias mal resolvidas com determinadas classes profissionais (com a polícia, por exemplo; mas a mim, pessoalmente, já me aconteceu ter de ouvir juízes falar da Comunicação Social de modo pejorativo ou jocoso; ainda há dias esta página do Expresso revelou o modo inacreditável como um juiz se dirigiu a um advogado; enfim, alguns juízes procedem como se ocupassem o lugar mais alto do tribunal para proclamarem 'doutas' opiniões ao mundo).
A Justiça precisa de uma lavagem de alto a baixo, precisa de bom senso (e felizmente muitos magistrados o têm), precisa de leis claras, precisa de jurisprudência. E precisa que os magistrados possam ser efetivamente responsabilizados por decisões manifestamente erradas.
Um só mau juiz dá mau nome a toda a Justiça. Mas de um bom juiz ninguém fala, porque apenas cumpriu sua obrigação, além de que, normalmente, é por natureza discreto.

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