Os "defensores" da Constituição (ao menos leram-na?)

Henrique Monteiro
Expresso,  Quinta feira, 21 de novembro de 2013
Várias pessoas, de diferentes áreas políticas, algumas que admiro outras de que sou amigo, reúnem-se hoje numa anunciada defesa da Constituição. Talvez a maioria esteja convicta de que a atual Constituição é um documento precioso, palavra por palavra. De outros - como António Capucho, Freitas do Amaral (que aliás votou contra ela em 1976) ou Pacheco Pereira - duvido deste súbito amor constitucional.
Eu não sou dos que entende que os artigos que têm sido invocados pelo Tribunal Constitucional (TC) para derrogar determinadas normas do Governo deviam sair da Lei Fundamental. Princípios como os da confiança, da equidade, da garantia de contratos constituem pedras basilares de qualquer sociedade evoluída. Coisa diferente, já é a interpretação que a maioria dos juízes do TC têm feito desses princípios.
Mas há muito defendo a revisão constitucional, e isso nada tem a ver com a crise que vivemos mas com outra convicção minha: a de que a Constituição Portuguesa é anacrónica, ou seja, não é conforme os tempos que vivemos, nem faz sentido.
Logo no preâmbulo afirma que Portugal quer "abrir caminho para uma sociedade socialista". Isso exclui um sem número de portugueses que não querem abrir caminho para ismo nenhum.   
Mas também estranho ver certas personalidades a concordar com outras normas da CRP - salvo por um taticismo frentista que parece digno dos melhores tempos do PCP. Por exemplo: Freitas, Capucho e Pacheco acham mesmo que as Comissões de Trabalhadores devem (como se diz no artigo 54º) "exercer o controlo de gestão nas empresas"? Acham que é ao Estado que cabe (artº 58) "promover políticas de pleno emprego"? Ou o "desenvolvimento sistemático de uma rede de centros de repouso e de férias"? (artº 59). Ou que "O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria" (artº 65). 
Mais, será que aquelas personalidades - e mesmo outras - concordam com apanágios ao dirigismo como o que está plasmado no artº 67 em que se afirma que o Estado deve "cooperar com os pais na educação dos filhos"? Ou "Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino" (artº 74) - recordo que o sistema de Bolonha, implantado há meia dúzia de anos, veio fazer com que os dois últimos anos do Ensino Superior (ou segundo ciclo) fosse pago e bem pago mesmo nas universidades públicas. Para não falar do artigo que diz que incumbe ao estado "orientar"  - é esta mesmo a palavra - a prática da cultura física e desportiva, ou do que assegura a "participação efetiva dos trabalhadores na gestão" nas (e aqui a terminologia também é sintomática) "unidades de produção do setor público". 
Enfim, podemos continuar por muitos outros artigos que são incongruentes, porque jamais foram aplicados. E a minha pergunta é a seguinte: qual a confiança num país que não cumpre a sua própria Constituição, ou acha que boa parte do que nela está - perdoe-se o plebeísmo - é paleio? E  estes "defensores" da Constituição, que hoje se reúnem, leram-na e concordam com isto? Acham que isto deve ser assim mesmo, ou acham também que isto é (como tantas vezes ouvi dizer... apenas retórica, não mais do que paleio?
Há uma coerência em certas pessoas mais à esquerda (eventualmente do PCP e do Bloco e próximas) que defendem palavra por palavra o que aqui está. Já no PS é difícil encontrar quem leve estes preceitos a sério. Quando a estes se juntam pessoas da área do PSD ou que veem do CDS, por muito que tenham virado para vários lados, é risível. Todos eles estiveram no poder, mas que me lembre nenhum ligou à Constituição. Nem o Tribunal, nem os cidadãos. Onde está o ensino gratuito em todos os graus? Onde estão as casas de renda compatível? Onde está a gestão das Comissões de Trabalhadores? Onde estão as "unidades de produção".
Nem toda a política pode ser tática. Um dia uma maioria de 2/3 com coragem tem de olhar para a Lei Fundamental e revê-la de modo a que dessa revisão resulte uma coisa muito simples: tudo o que lá ficar é para cumprir. 
E não deve ficar mais do que isso mesmo. Claro que isto não resolveria um único dos chumbos do TC, porque os princípios enunciados estariam sempre presentes. Mas resolvia outro problema - a Constituição deixaria de ser um terreiro de disputa política, coisa que não deve ser, nem para a atacar, nem para a defender com o único intuito de atacar quem a ataca.

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