A dimensão cooperativa


Rui Tavares Público,  26/02/2014 - 00:05
Na semana passada, à hora de embarcar para um colóquio universitário sobre democracia, passo pela livraria do aeroporto e vejo um livro que me chama a atenção.
O autor é um sociólogo aparentemente bastante conhecido e o assunto do livro é a cooperação, ou melhor, a política e a sociologia da entreajuda.
Sento-me na cadeira designada, o avião levanta voo, começo a ler. O primeiro capítulo é sobre questões de cortesia e polidez. O autor descreve como as sociedades contemporâneas se tornaram em muitos casos agressivas e mesmo cruéis, com indivíduos isolados respondendo a estímulos de competição exacerbada. Aquilo que é "bullying", ou humilhação agressiva, entre crianças e adolescentes, torna-se em "bullying" político e cultural entre adultos, tão conhecido das redes sociais. A falta de cortesia de alguns indivíduos origina o fechamento dos outros e a perda é de nós todos, em incapacidade de auto-realização e de trabalho conjunto das sociedades.
Chegado ao colóquio, tenho quase imediatamente uma ilustração prática das teorias daquele autor. Um participante num seminário interrogava agressivamente a oradora, declarando um dos projetos que ela tinha apresentado "um falhanço da imaginação", desprezando com caretas as respostas que ela lá ia tentando dar, e encerrando todo o episódio com um "não vale a pena, não estamos a comunicar". A sala ficou fria e a comunicação, de facto, falhou.
O episódio não me saiu da cabeça. Na manhã seguinte, no quarto de hotel, fui ver o livro do sociólogo que escrevia sobre cortesia e cooperação. Depois fui ver o programa do seminário. Intrigado, fui ver o nome do tipo bruto e mal educado. Fui outra vez ao livro para ver a fotografia do autor.
Eram a mesma pessoa.
Que significa esta história? Que há um autor que escreve sobre cortesia e se comporta de forma bruta e mal-educada? Há muitos autores assim. E o facto de ele ter razão quando escreve o livro não lhe é retirado quando não se comporta à altura das suas teorias.
Pelo contrário, talvez lhe dê mais razão ainda. Vivemos num mundo inflamado em competição. Competição entre indivíduos, entre famílias, entre empresas, entre nações, entre blocos regionais. Justificou-se essa competição com o argumento de que ao competir todos ficaríamos melhores. Esquecemos que para ser melhores precisamos uns dos outros. Sem cooperação, sem entreajuda, a competição é apenas um sistema em que para uns poderem ganhar todos os outros têm de perder. E a sala vetusta de uma universidade não é exceção.
Há cem anos vivia-se também num regime de "sobrevivência do mais forte", uma caricatura do darwinismo proposta por alguns sociólogos como Herbert Spencer, e contrariada por um zoólogo como Piotr Kropotkine, que relembrava que as espécies que mais cooperam, como as abelhas, e os próprios humanos, eram mais resilientes e sustentáveis (que tanto Spencer como Kropotkine fossem anarquistas de ideologia torna as suas contradições ainda mais curiosas).
Uma coisa para mim é certa; para saírmos do buraco em que estamos temos de abandonar os extremos da competição e redescobrir uma cultura da cooperação. Como a história acima prova, porém, é fácil até a quem defende esta teoria esquecer-se dela.

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