As coisas más acontecem às pessoas boas

Isabel Stilwell ionline 2014.07.19

Judite de Sousa e o filho foram vítimas da Crença no Mundo Justo. Entender do que se trata ajuda-nos a ser menos cruéis

Judite de Sousa protestou, com toda a legitimidade, contra uma revista que, em título de capa, escreveu qualquer coisa como "A vida boémia de André Bessa", pedindo que respeitassem a memória do filho. Poderia ter ido mais longe porque o direito ao bom nome não caduca com a morte (artigo 71.o do Código Civil), embora muitas vezes os jornalistas o esqueçam. Como esqueceram, por exemplo, quando abriram telejornais com a vida privada das vítimas da praia do Meco, expondo até os SMS trocados, como esquecem constantemente quando esgravatam a vida de mais famosos ou menos famosos em busca de "podres", que alegadamente justificam a desgraça que lhes aconteceu. Que depois os espectadores e os leitores consomem, cúmplices.
Mas o que leva a vender e a comprar esta forma obscena de desrespeitar os outros? Porque é que nós, pessoas de bem, procuramos obsessivamente falhas nas vítimas de tragédias? Porque nos sossega saber que a rapariga violada, "afinal" usava uma saia curta, que os pais a quem desapareceu um filho "afinal" estavam distraídos a ver uma montra, ou que a mulher que apanha do marido "afinal" andava a pedi-las?
O psicólogo Melvin Lerner, nos anos 70, levantou uma hipótese: será que agimos assim porque queremos desesperadamente acreditar que aquilo não nos podia ter acontecido a nós, não pode vir a acontecer-nos a nós? Porque não suportamos a ideia de que tudo é aleatório, de que bons e maus são tratados na tragédia por igual?
Depois de muita investigação concluiu que sim, que a teoria da Crença no Mundo Justo fazia sentido. E, mais que isso, explica por que razão após um primeiro momento de aproximação e empatia o medo é tão grande que nos afastando, explorando as diferenças que nos distinguem daquela pessoa, daquela mãe, daquelas famílias, assegurando-nos que "o nosso caso é diferente". Queremos crer que os nossos filhos estão seguros porque não saem à noite, não podem ser raptados porque os temos sempre debaixo de olho, nem violados porque só usam saias abaixo do joelho...
É sinistro, mas todos acabamos por, em maior ou menor grau, sofrer deste fenómeno, como me explicou a psicóloga Isabel Correia, professora do ISCTE, e que investiga este comportamento. Numa entrevista ao "Destak", deixou tudo dolorosamente claro: "Queremos acreditar que 'cada um tem o que merece', que as coisas boas acontecem às pessoas boas e as coisas más às pessoas más. Esta crença leva-nos a avaliar as características ou as acções das pessoas de acordo com os seus resultados: se lhes acontece algo bom é porque são boas ou fizeram algo bem feito, se acontece uma coisa má é porque são más. Assim o mundo é sempre justo."
O que pretendemos com isso é manter a ideia de que somos invulneráveis às ameaças da vida. E a técnica resulta e sossega, porque as pessoas com uma CMJ mais elevada podem não merecer nem um bocadinho da nossa admiração, mas, indica Isabel Correia, registam "níveis de bem-estar psicológico mais elevado" que aquelas que resistem a esta fórmula anestesiada de ver o mundo.
O pior é que ao apadrinharmos esta crença vitimizamos uma segunda vez: como se não bastasse aquilo por que passou, ainda a acusamos de ter culpa do que lhe sucedeu.
A consciência das armadilhas da mente que, sem escrúpulos, faz tudo para nos levar a acreditar que desde que sigamos o carreirinho não nos vamos cruzar com o lobo mau, deve deixar-nos alerta: cada vez que estiver tentado a bisbilhotar mais um detalhe negro da vida alheia, ou prestes a mandar uma boca mazinha, lembre-se de que tenta apenas negar a dura realidade, ou seja, que as coisas más acontecem, sim senhora, às pessoas boas. O mínimo que podemos fazer é não as penalizar com uma dupla injustiça.

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