Electricista, comum de operários

Pe. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA | 
Voz da Verdade, 20140720



Quem percorrer o índice das celebrações do Missal Romano, na sua edição portuguesa de 1992, depara-se, logo na primeira letra do alfabeto, com vinte festas ou memórias litúrgicas com orações próprias. Destas duas dezenas de celebrações, uma corresponde ao Santo Anjo da Guarda de Portugal; outra, a um apóstolo; nove são de bispos, dos quais seis são também doutores da Igreja; a que acrescem mais três presbíteros, um abade, dois mártires e duas virgens, uma também mártir. Fiéis cristãos casados? Tão só Ana e Joaquim, pais de Nossa Senhora!

O panorama não se altera em relação à seguinte letra: dos treze contemplados, há a registar dois apóstolos; quatro bispos, dois deles doutores da Igreja e os outros dois mártires; três presbíteros; dois abades e duas religiosas. Leigos? Nenhum!

Poder-se-ia prosseguir a contagem, mas os dados apontados são suficientes para concluir que o Missal Romano, quase meio século depois da reforma litúrgica implementada pelo Concílio Vaticano II, continua a privilegiar os clérigos e religiosos, em detrimento das vidas santas de fiéis leigos, em muitos casos não menos meritórias, nem menos exemplares. Se se tiver em conta que, neste ano de graça de 2014, a Igreja universal muito justamente rejubila com a canonização de dois papas – João XXIII e João Paulo II – e vai ainda muito felizmente beatificar Paulo VI, pode-se afirmar que, ao que parece, esta tendência se mantêm também na actualidade, não obstante o ensinamento conciliar que lembrou que os fiéis leigos são, a par dos clérigos e consagrados, protagonistas da missão eclesial, proclamando solenemente o chamamento universal à santidade e ao apostolado na Igreja. 

A razão desta preferência algo clerical é compreensível: a santidade de vida de um Papa, como os três mencionados, tem uma muito maior notoriedade do que a existência de um leigo, cuja existência tenha sido tão discreta e comum como a da Sagrada Família em Nazaré. Por outro lado, não é fácil promover um processo de beatificação e, por isso, só a Santa Sé, as dioceses e algumas instituições da Igreja podem disponibilizar os recursos necessários para esse louvável fim.

Mas é de lamentar que, meio século depois do Concílio Vaticano II, os leigos continuem praticamente ausentes do Missal Romano. Note-se, a este propósito, que só estão previstas as missas comuns de Nossa Senhora, dos mártires, dos pastores e doutores da Igreja, das virgens e dos santos e santas. Quer isto dizer que um papa, bispo ou sacerdote santo é liturgicamente contemplado com as orações do comum dos pastores. As religiosas, enquanto virgens, têm também direito a um tratamento litúrgico próprio. Mas os fiéis leigos não mereceram nenhuma atenção especial na reforma litúrgica e, ignorada completamente a sua condição familiar e profissional, são incluídos, à falta de melhor, no comum dos santos e santas, que é uma espécie de vala comum dos bem-aventurados.

Faz falta uma missa comum das santas esposas e mães que, como Santa Joana Beretta Mola, se santificaram no exercício heróico dos seus deveres familiares e profissionais. A virgindade das religiosas é muito louvável, mas a condição matrimonial e maternal de tantas mulheres cristãs o não é menos. Fazem falta textos próprios para as missas de leigos santos, como os que se destacaram no cumprimento das suas obrigações profissionais e cívicas, como S. Tomás More, pois não são só os pastores e doutores da Igreja que devem ser exaltados pelos seus dotes de governo e de sabedoria. É tal o desfasamento entre a realidade social e o seu reflexo litúrgico que, na celebração litúrgica dos pastorinhos de Fátima, não procede o comum de pastores, mas de santos…

À conta deste desabafo pós-conciliar e anticlerical, um voto que é também uma oração: queira Deus que, se se provar um dia a santidade de vida destes egrégios cristãos, se possa celebrar liturgicamente a festa de São Balduíno, Rei dos belgas, comum de governantes; ou a de Santa Irena Sendler, leiga, comum de assistentes sociais; ou, ainda, a de São Lech Walesa, electricista e sindicalista, comum de operários.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António