A guerra e o sagrado

A guerra e o sagrado
ANTÓNIO ARAÚJO (historiador)
Público, 2014.08.17

A Grande Guerra trouxe um "regresso aos altares" em Portugal. Foi a resposta ao desconcerto do mundo à volta.

A Grande Guerra e o surto da pneumónica foram dois elementos essenciais para a redescoberta do espírito religioso nos alvores da década de vinte do século passado, fenómeno que teria influência decisiva na reconfiguração das relações entre a Igreja e o Estado e também no surgimento de uma militância católica mais activa no plano político.
A presença da Guerra, seja nas trincheiras, seja na home front, contribuiu para um "regresso ao sagrado", aquilo que em França se designou por "regresso aos altares". Os soldados vieram "melhores, maiores, vivendo mais perto de Deus", dizia Mário de Almeida (O Clarão da Epopeia, 1919). Augusto Casimiro, um membro do Corpo Expedicionário Português (CEP) escreveria numa carta: "Nunca, nunca senti Deus como agora, nem a minha alma respirou um ar mais puro e forte...". Casimiro afirmava que "os calvários redimem" e que os soldados eram os "cristos desta guerra", porventura numa aproximação ao célebre Cristo das Trincheiras, actualmente exposto no Mosteiro da Batalha.
Outros, como o escritor Aarão de Lacerda, iam ao ponto de afirmar: "A guerra actual deve ter sido uma límpida fonte de inspiração sagrada." Não foi coincidência o facto de a União Gráfica ter publicado uma novela, da autoria de Ricardo Cruz, que envolve um médico abastado de ascendência aristocrática, Jacques d'Hautenay, uma religiosa francesa, a irmã Suzanne, um clérigo, frei Agostinho, e o personagem central, o capitão Maurício Estêvão Garcia que, ferido em combate, beneficia da assistência da Igreja, que o encaminha no sentido da fé cristã. A novela – com o título expressivo Da Parte de Deus! – termina com o falecimento do herói lusitano e a frase lapidar: "Compreendi a grande lição da Morte." A ideia da necessidade de amparo espiritual, que provoca nos descrentes uma espécie de inveja da fé, está especialmente presente na peça Os Cegos, de Joaquim Leitão. São curiosíssimos os diálogos aí travados entre um alferes agnóstico e um capelão militar. O alferes diz que, apesar de não temer a Deus, permitia a acção do sacerdote ("Bem sabe que não contrario a sua missão"), e o padre reconhece o facto ("Esse favor lhe devo. Deus lh'o agradecerá"). No final, o alferes confessará, obviamente, que lamentava não crer em Deus e que tinha inveja dos que foram tocados por essa graça.

Os relatos literários e memorialísticos da Grande Guerra – e da religiosidade na frente – pecam por algum exagero ou, na melhor das hipóteses, não retratam com fidedignidade as dificuldades vividas pelos (poucos) capelães militares que faziam a assistência religiosa às tropas portuguesas. No seu "diário", o Pde. Lopes de Melo queixava-se que era olhado com "desconfiança" e "tanta indiferença"; dias depois, confessa a "triste impressão" com que ficou por ter detido na estrada os soldados que tentavam escapar à missa que iria ser celebrada numa capelinha em ruínas, sob uma chuva de granadas do inimigo.
A questão que se coloca é a de saber se o frémito religioso nasceu apenas com o temor da guerra ou se já estava latente na sociedade portuguesa. Alguns, mais empenhados, não têm dúvidas, como sucede com António Corrêa d'Oliveira, possivelmente o autor dos poemas alusivos à guerra onde a marca da fé católica é mais visível. O seu livro Soldado que vais à guerra fala em verso de um carteiro que ao crepúsculo distribuía as cartas vindas da Flandres nas aldeias de Portugal. Aí, era indiscutível que a fé não se perdera, apesar de todos os esforços do doutor Afonso Costa:
Então, há lá pela aldeia

Quem se esqueceu de rezar?
Oh, Senhor! Que nem o creia:
Comerem o pão da ceia,
Sem louvor ao Pão do altar!

Também na frente de batalha os soldados não esqueceram o catolicismo que trouxeram de Portugal, como numa mensagem em verso que um ferido envia à mulher que deixou na aldeia:
Vim parar ao Hospital...

(Não tenhas pena, Maria!
Tratou de mim, noite e dia,
Um Anjo de Portugal,
Que me falava e sorria...).

A ideia de que a religiosidade era algo que já estava impregnado no espírito de muitos portugueses surge igualmente na peça 9 de Abril, de António Botto; num bairro pobre de Lisboa, uma das personagens femininas, Florinda, assoma à janela quando ouve as tropas a marchar para a guerra, e logo exclama "Nossa Senhora os acompanhe!". É extremamente difícil – e relativamente secundário – saber se a I Grande Guerra fez nascer sentimentos religiosos novos ou se se limitou a despertar convicções que a política da República não conseguira erradicar. O importante é notar o impacto social de um conflito em que, segundo os dados oficiais, compilados em 1926, 55 mil homens integraram o C.E.P., 30 mil combateram em Moçambique e 23 mil em Angola. No C.E.P., morreriam mais de 2200 militares. Em cada 13 famílias portuguesas, uma teve um soldado mobilizado; em cada 39,6 famílias um morto ou um ferido; e em cada 182 famílias uma teve um prisioneiro de guerra. Uma realidade com esta dimensão não pode deixar de ter tido uma tradução no plano dos comportamentos, das atitudes e das mentalidades. Se ocorreu um recrudescimento do interesse pelo espiritismo, logo condenado pela Santa Sé, se em alguns países, como o Reino Unido, se verificou uma simplificação dos rituais fúnebres e um incremento da defesa da cremação, ao mesmo tempo que a morte passou a ser evocada em lieux de mémoire como os cemitérios ou os memoriais de guerra, se, enfim, há toda uma natural atracção pelo sobrenatural e pelo religioso, não é improvável que em Portugal se tenha assistido a uma redescoberta da fé católica perante o desconcerto do mundo envolvente.
Missa para soldados franceses na frente de Champagne, no Leste da França, em 1915 DENISE FOLLVEIDER/COLLECTION ODETTE CARREZ/REUTERS

Para mais, o Papa Bento XV desde o início manifestara a posição da Igreja em favor da imparcialidade da Igreja e do restabelecimento da paz, como ficou patente na encíclica Ad Beatissimi, logo de Novembro de 1914, na alocução ao Consistório de Janeiro de 1915, em diversas proclamações sobre a situação dos soldados e dos capelães militares, na mensagem aos beligerantes Allorchè fummo (Julho de 1915), na famosa exortação à paz de Agosto de 1917 e, enfim, através de inúmeras diligências diplomáticas e negociações secretas, algumas das quais levadas a cabo na Alemanha pelo Núncio Pacelli. Entre nós, o católico Artur Bívar, num livro intitulado A Religião e a Guerra, escrevia em 1918 que "a guerra, com todo o seu cortejo de calamidades, é uma grande missionária. Inegáveis consequências tem, por certo, o chamamento de tantos milhões de homens à realidade dos supremos sacrifícios – para uns, o da imolação da própria vida nos campos de batalha; para outros o da resignação ao rompimento dos laços que lhe faziam a existência menos agra de levar". Dizia ainda "que nas horas acerbas da tribulação volve o homem com mais empenho seus olhares para Deus", concluindo pela existência de um "justo quinhão à guerra no actual renovamento religioso".
Se há quem afirme que movimentos culturais como o modernismo são indissociáveis da guerra de 1914-1918, esta é igualmente responsável pelo renascimento de um conjunto de valores tradicionais, ligados a conceitos como "patriotismo", "glória de combater", a par de um novo nacionalismo e de uma nova religiosidade. A grande catástrofe europeia cria uma atmosfera favorável à emergência de visões fantásticas e oníricas, algumas das quais impregnaram também o microcosmos cultural português, em novelas para consumo de massas que relatavam sonhos apocalípticos, alucinações com Joana d'Arc ou freiras que asseveravam ter visto anjos nos campos de batalha.
É difícil – e relativamente secundário – saber se a I Grande Guerra fez nascer sentimentos religiosos novos ou se se limitou a despertar convicções que a política da República não conseguira erradicar
Uma das histórias mais populares da altura dizia que, em Mons, grupos de anjos protegeram os soldados britânicos em 1914; em contrapartida, muitos asseguraram que tinham visto demónios ao lado das tropas alemãs. Nas páginas da Revue Spirite, escrevia-se que os mortos tinham formado um batalhão próprio, "para apoiar os soldados nesta contenda épica". Outro cultor do espiritismo garantia que viu mortos a marchar na parada de celebração do armistício. Por seu turno, a novela de cariz espírita Raymond, da autoria de Oliver Lodge, escrita em homenagem a um filho morto em Ypres, tornou-se um best-seller com várias edições entre 1916 e 1919, sendo muito popular nas trincheiras. Eram ainda muito populares as fotografias de espíritos, que mostravam imagens nebulosas de mortos que gentilmente se deixavam captar pelas câmaras. E poder-se-ia citar ainda, mas agora num plano diverso, a famosa cena dos mortos de guerra que se levantam das campas no filme J'Accuse (1919), de Abel Gance, tema também explorado literariamente por Roland Dorgèles na novela Le retour des morts, ou o muito popular Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1919), baseado na obra homónima de Blasco Ibañez, em que o herói de guerra, protagonizado por Rudolfo Valentino, morto em combate, aparece em sonhos à sua amante e diz-lhe que volte para o marido, um senador francês que ficara cego na linha da frente.
Existiam, a par disso, crenças mais sintonizadas com a ortodoxia, que emergiram, aliás, do início ao fim do conflito. Aquando da mobilização, os ingleses que se alistavam erigiram, nas ruas de Londres, o que designaram por "santuários de rua", que tiveram grande êxito junto da população católica de origem irlandesa mas foram igualmente apoiados pela Igreja Anglicana. A revista católica francesa Frères d'armes contava a história de uma piedosa marraine de guerre, que se destacara por enviar cartas e pacotes de víveres aos soldados, e dedicava agora os seus esforços do pós-guerra a rezar pelas almas dos militares mortos que se encontravam no Purgatório, de modo a apressar a sua ida para o Céu. São também exemplares os milhares de monumentos aos mortos da Grande Guerra que se ergueram por toda a Europa, sendo mais exuberantes os dos países católicos do que os das terras protestantes (nestas, preferiam-se memoriais simples, normalmente obeliscos em vez de cruzes e sem grandes ornatos). Não só muitos deles têm motivos religiosos, contendo figuras como a Pietà, cruzes ou alusões à Paixão de Cristo, como à cerimónia da sua inauguração, a que compareciam desde veteranos e mutilados de guerra às crianças das escolas, assistia normalmente a autoridade eclesiástica local, que não raras vezes benzia o monumento ou dedicava uma oração às vítimas da beligerância humana.

Mesmo quando os discursos eram deixados a cargo das autoridades locais ou dos presidentes das comissões que lançaram os memoriais de guerra eram frequentes as alusões religiosas, citando-se muitas vezes trechos do Antigo Testamento – como a luta de David e Golias – ou do Evangelho. Em França, foram reconstruídas dezenas ou mesmo centenas de igrejas que a guerra destruíra, e muitas delas foram decoradas com claras referências ao conflito bélico: na Notre Dame de Bertincourt, uma imagem da Virgem a pedir a Cristo pela alma de um soldado morto; em Ecourt-Saint-Quentin, anjos a acompanhar aos céus as almas dos caídos em combate. Em Inglaterra, em certas igrejas foram mesmo colocados vitrais com imagens de tanques, peças de artilharia e aviões de guerra. Na Alemanha, na catedral de Kemnath, um vitral mostra um monge beneditino ajoelhado junto ao féretro de um soldado morto.
Por todo o lado se viam as sequelas do conflito, irreversivelmente impressas nos corpos dos mutilados
Os traumas do pós-guerra marcaram a consciência europeia de uma forma absolutamente nova: por todo o lado se viam as sequelas do conflito, irreversivelmente impressas nos corpos dos mutilados, que em França ganhariam o epíteto de les gueules cassées, ou, entre nós, dos jovens conhecidos como "gaseados da Flandres".
No norte de França e na Flandres, entre outros locais, improvisaram-se milhares de cemitérios ad hoc, e as famílias tiveram de batalhar para conseguirem exumar os corpos dos seus entes queridos. Perante a irredutibilidade das autoridades francesas – que se recusavam a deixar que os pais, mesmo às suas custas, levassem os cadáveres dos filhos para as suas terras – criou-se mesmo uma indústria clandestina de exumações, através da corrupção dos coveiros, o que enfureceu os militares, responsáveis pela guarda dos cemitérios, e os mais pobres, que consideravam ser a exumação dos entes queridos um privilégio reservado aos ricos. A questão cruzou argumentos nos dois sentidos - "não separem aqueles que a morte uniu", diziam uns; "o sacrifício destes jovens foi feito em nome dos laços familiares", replicavam outros – e acabou por ser discutida pelo Conseil d'État; no final, o Ministro da Guerra, em Junho de 1919, proibiu todas as exumações na zona das operações militares, não atendendo àqueles que defendiam a então chamada "desmobilização dos mortos", inclusivamente por motivos religiosos.
Soldado francês com uma caveira na mão, numa foto sem data INTERNATIONAL CONTEMPORARY DOCUMENTATION LIBRARY (BDIC)
Para muitos católicos, a exumação dos mortos era a única forma de os retirar de cemitérios secularizados e de lhes dar um enterro conforme às suas convicções religiosas; alguns chegaram mesmo a avançar argumentos anti-semitas, sugerindo que o Ministério da Guerra não permitia as exumações porque a maioria dos seus altos funcionários eram judeus. E quando, em Setembro de 1920, o Ministério da Guerra permitiu a recuperação dos cadáveres, não só foi necessário montar uma imensa estrutura para proceder à remoção e transporte de cerca de 300 mil corpos reclamados pelas famílias, como se abriram novas controvérsias, nomeadamente em torno da questão de saber quem tinha o direito a ficar com os corpos, se os pais – cujas associações diziam serem preponderantes os laços de sangue – se as viúvas (venceram os primeiros). Além das numerosas cerimónias em honra dos soldados desconhecidos que ocorreram um pouco por todo o lado – desde o Arco do Triunfo, em Paris, à Abadia de Westminster, em Londres, passando pelo Mosteiro da Batalha, em Portugal, ou locais congéneres na Nova Zelândia, Bélgica, Estados Unidos, Canadá, Itália ou Austrália – o gigantesco movimento de exumações e os milhares de serviços fúnebres a que deu lugar foram naturalmente pretexto quer para uma rememoração da Guerra, quer para uma revivescência de sentimentos religiosos associados à dor pela perda dos entes próximos.
Durante o conflito bélico propriamente dito, tais sentimentos desenvolveram-se de forma muito profunda não apenas em face da morte – ou da possibilidade da morte – mas também das notícias da morte. Explicando melhor, as dificuldades de comunicação e a lonjura da frente de combate faziam com que, em muitos casos, às famílias fossem dadas notícias tardias ou pouco claras sobre o que acontecera aos seus filhos. A isto acresce o facto de, em muitos casos, ser difícil ou impossível identificar os cadáveres e de milhares de soldados que pura e simplesmente tinham desaparecido, engolidos nas trincheiras pelas explosões dos obuses ou mortos nos campos de prisioneiros. Só na batalha do Somme cerca de 73 mil corpos de militares dos Aliados nunca foram descobertos.
Milhões de preces foram dirigidas aos Céus para que chegassem cartas dos entes queridos ou, quando ocorria o pior, para que não fosse verdade o que estava escrito nas mensagens vindas do "front"
Mesmo quando era possível resgatar os corpos, o caos instalado na frente de combate dificultava as tarefas de identificação dos cadáveres. Corriam, por isso, rumores de que as notícias vindas da Flandres não eram fiáveis; circularam histórias sobre soldados que tinham falsamente sido dados como feridos ou mortos e que, miraculosamente, reapareciam dias depois junto dos seus camaradas – a que não será estranha a circunstância de se verificarem muitas deserções temporárias na linha da frente – ou que posteriormente se sabia terem sido aprisionados pelo inimigo. Dizia-se às famílias que os seus parentes tinham sido feridos ou que haviam morrido mas muitos não acreditavam na fria singeleza com que, em duas ou três linhas, as mensagens oficiais os informavam do que se passara nas trincheiras.
As mensagens raramente precisavam o grau de gravidade dos ferimentos, as partes do corpo atingidas ou sequer em que local os soldados se encontravam a ser tratados, o que contribuía para aumentar a ansiedade das famílias. Os que viviam mais perto dos pontos de combate ou os mais abastados não hesitaram em deslocar-se para lá, em busca dos seus familiares ou, mais frequentemente, para os acompanhar enquanto se encontravam hospitalizados. A esperança de que os seus filhos ou maridos continuassem vivos ou perdidos nas neblinas da Flandres, mesmo posta contra o que diziam as autoridades militares, levou muitos a refugiarem-se no sagrado.
Milhões de preces foram dirigidas aos Céus para que chegassem cartas dos entes queridos ou, quando ocorria o pior, para que não fosse verdade o que estava escrito nas mensagens vindas do "front". É sintomático que na Austrália tenham escolhido sacerdotes para comunicar às famílias as notícias das mortes em combate. Compreender-se-á melhor o peso que a religiosidade adquiriu se a tudo isto juntarmos a acção de numerosos grupos de voluntários, uns ligados à Cruz Vermelha, outros às diversas confissões religiosas, que se dirigiam junto das famílias enlutadas ou dos mutilados para lhes prestar auxílio espiritual e, em certos casos, material.
Os feridos de guerra, por sua vez, começaram a constituir associações praticamente logo que chegaram da frente, muitas delas com ligações às igrejas. As viúvas tornaram-se um grupo social importante – calcula-se que 3 dos 9 milhões de mortos na Grande Guerra deixaram viúvas, além de cerca de 6 milhões de órfãos – e, de um modo geral, bastante permeável ao proselitismo religioso, tanto mais que a esse proselitismo estavam associadas actividades caritativas e de apoio material que se revelavam indispensáveis para minorar a situação economicamente débil das viúvas, num tempo em que o homem era o único sustento do lar e a assistência do Estado tinha uma expressão assaz reduzida.
Calcula-se que 3 dos 9 milhões de mortos deixaram viúvas, além de cerca de 6 milhões de órfãos. Foram um grupo bastante permeável ao proselitismo religioso
Salvo nos casos de famílias mais abastadas, enviuvar significava cair na pobreza e ter de abandonar quase todos os hábitos de vida que se tinham antes de o marido partir para a frente de combate. Como a mortalidade incidiu em especial nas patentes mais baixas, ou seja, naqueles que, em princípio, provinham dos estratos inferiores da sociedade, é fácil perceber a dimensão social que este fenómeno adquiriu. Para lidar com ele, adoptaram-se soluções diferenciadas: em Inglaterra, prevaleceu a tradição filantrópica vitoriana, centralizada na Soldiers' and Sailors' Families Association; na Alemanha, o Estado, na linha da política social de Bismarck, tomou a si o encargo, através das autoridades locais, de proteger as viúvas e os órfãos, ainda que posteriormente a espiral inflacionista dos anos vinte tenha desbaratado o valor das pensões de guerra; em França, foram as organizações de caridade, na maioria ligadas à Igreja, quem se ocupou da situação das viúvas, facto que certamente terá contribuído para um fortalecimento do catolicismo. É legítimo supor que o mesmo terá sucedido em Portugal.
A organização da memória da Grande Guerra foi também fortemente marcada pelas igrejas. Em França, por exemplo, foram criadas hospedarias, com o nome de santos, para albergar a preços módicos os milhares de viajantes que iam em peregrinação visitar as campas dos seus familiares. Na cidade de Paris, o clérigo Fred Keller levou a cabo um ambicioso programa de assistência que consistia na construção de casas para famílias pobres – a Cité de souvenir, que ainda hoje existe. Cada uma das famílias "adoptava" um soldado morto na Guerra, cujo nome era colocado numa placa à entrada da respectiva habitação; no pátio, uma capela decorada com murais de Desvallières que comparavam a vivência dos soldados à via crucis de Cristo lembrava à posterioridade a marca da Igreja nesse projecto social.
A recomposição do campo católico
Tendo um profundo impacto espiritual e religioso, a guerra teria um efeito decisivo na recomposição do catolicismo português, permitindo o seu regresso à esfera pública de uma forma que teria sido impensável nos tempos da Lei da Separação, de Abril de 1911.
Num elogio às virtudes militares dos soldados portugueses, feito em 1921, o marechal Gomes da Costa centrar-se-á num "pobre herói, que meteram num navio com uma arma ao ombro, sem lhe dizerem para onde ia"; morrerá dignamente em combate, recordando "a religião que a Mãe lhe ensinara, e o heroísmo que o seu coronel lhe pregara". As crenças religiosas e as convicções patrióticas fundiam-se, assim, no espírito do soldado português que o cabo-de-guerra comovidamente evocava. A mesma comoção percorre as páginas que Jaime Cortesão dedica ao florescimento da fé religiosa, a alternativa possível de que o povo simples dispunha ao culto patriótico personificado em Camões.
A pulsão religiosa era sentida de forma tão veemente que alguns chegavam a criticar a atitude passiva dos bispos portugueses. Em França, Adelino Mendes enternece-se ao assistir a um serviço religioso em Notre Dame de Paris, onde se implorava a protecção divina para os exércitos que enfrentavam os alemães. Questiona, então, a razão pela qual os prelados portugueses não fariam o mesmo. Era uma crítica algo injusta. De facto, já em Janeiro de 1915 o Patriarca Mendes Belo escrevia ao Presidente da República propondo o envio de capelães militares para a frente de combate, e também não foi por acaso que a Associação do Registo Civil e a Federação Portuguesa do Livre Pensamento lançaram a campanha "Sem Deus!", que protestava pela presença de padres nos regimentos e a distribuição de símbolos religiosos aos soldados.
A participação de capelães militares na Grande Guerra, com efeito, contribuiu de forma decisiva para melhorar a imagem da Igreja e para engrandecer o prestígio de alguns sacerdotes. Um deles é o padre Luís Lopes de Melo, assistente eclesiástico do C.A.D.C., que se voluntaria como capelão militar e regressará ferido da Flandres. Outro, o do padre José Ferreira de Lacerda, que esteve em França com o Corpo Expedicionário Português entre Maio e Setembro de 1917 e se tornará um dos mais activos propagandistas da causa de Fátima.
A pulsão religiosa era sentida de forma tão veemente que alguns chegavam a criticar a atitude passiva dos bispos portugueses
O caso mais emblemático é, todavia, o do futuro bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias, que para sempre ficará conhecido como "bispo-soldado". Um dos fundadores do C.AD.C. – instituição que, de resto, se orgulhará da participação dos seus associados no conflito de 1914-18 – Patrocínio Dias fora preso durante a I República, mas com a permissão de assistência religiosa na frente de guerra será designado chefe do corpo voluntário de capelães. Toda a sua carreira futura será marcada pela experiência na Grande Guerra, onde conquistou diversas condecorações. Assim, será membro do Conselho Superior da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, fundada em 1924, e da Comissão dos Padrões da Grande Guerra. A celebração de exéquias em memória dos mortos da guerra constitui mais um pretexto para aproximar a Igreja e a República.
Em 9 de Abril de 1921, celebra-se missa por alma dos soldados desconhecidos, a que comparece o Patriarca Mendes Belo e quase todos os prelados do continente, tendo a missa sido celebrada pelo cónego Manuel Anaquim com pregação de D. Manuel Mendes da Conceição Santos. No dia seguinte, realiza-se a trasladação dos restos mortais do Soldado Desconhecido para o Mosteiro da Batalha, numa cerimónia solene presidida por António José de Almeida e em que estão presentes o marechal Joffre, o generalíssimo Diaz e José do Patrocínio Dias, este envergando vestes episcopais e ostentando ao peito as medalhas que distinguiram a sua heroicidade na frente de combate.
Num gesto impensável pouco tempo antes, Afonso Costa conversou amigavelmente com o Cardeal Patriarca e felicitou de forma calorosa o bispo de Beja. "Dispensaram o Senhor Presidente da República e o Governo as atenções devidas ao clero. Tanto na Basílica da Estrela como no mosteiro de Santa Maria da Vitória, assistimos às cerimónias religiosas. Prestaram-se todas as homenagens ao Sr. Cardeal Patriarca, que foi, de resto, duma impecável correcção. No banquete oferecido às missões estrangeiras pelo Senhor Presidente da República, estiveram presentes o Arcebispo de Mitilene em representação do Cardeal Patriarca, doente, e o Bispo de Beja. Tornou-se público o entendimento entre o Estado e a Igreja" – escreveu Domingos Pereira ao Ministro de Portugal junto da Santa Sé, em 21 de Abril de 1921.
Dois anos depois, em Abril de 1923, D. José do Patrocínio Dias falará sobre "as virtudes do soldado português" na Sociedade de Geografia de Lisboa, na sessão comemorativa da batalha do Lys, a que comparece o Presidente da República, António José de Almeida. Na altura, já havia sido sagrado bispo de Beja, ocasião em que, significativamente, recebeu um telegrama de felicitações de António José de Almeida em que este relembrava "o dedicado e brioso capelão militar em cujo peito justamente se ostenta a Cruz de Guerra da República Portuguesa".
O processo que o conduziu à chefia da diocese pacense ilustra bem o estado das relações entre a Igreja e o Estado no pós-guerra. Recorde-se que o Patriarca escreve ao Papa pedindo-lhe a sua intercessão pelos portugueses ("vos enfants portugais") prisioneiros dos alemães. Originalmente, pensava-se que na diocese de Portalegre seria colocado Patrocínio Dias e na de Beja Domingos Frutuoso, mas o Ministro dos Negócios Estrangeiros escreve ao Vaticano pedindo-lhe que as respectivas colocações fossem trocadas, o que a Santa Sé aceita. O Estado português dará sinais de reconhecimento: António José de Almeida acede ao pedido que lhe é feito para restaurar a Sé da Guarda para que aí fosse sagrado, como bispo de Beja, José do Patrocínio Dias.
A trajectória do prelado pacense é, pois, um bom exemplo do impacto da Grande Guerra na situação religiosa em Portugal. Deve notar-se, além disso, que a "guerra" não se cingiu ao que se passava na frente de batalha. O conflito levou ao alinhamento dos católicos e à sua progressiva autonomização em face do campo monárquico, que culminaria na adopção de uma estratégia de ralliement, com a bênção da Santa Sé, de que os homens do Centro Católico, como Lino Neto e Oliveira Salazar, seriam os principais expoentes.
O conflito levou ao alinhamento dos católicos e à sua progressiva autonomização em face do campo monárquico
Se não existem dados que permitam sustentar, de forma inequívoca, a ideia de que foi a guerra que começou a abrir fissuras entre católicos e monárquicos, há muitos elementos que comprovam o antigermanismo de destacados fiéis. O caso mais expressivo é o de Fernando de Souza, que numa volumosa obra publicada em 1918, com o título A Grande Guerra (Aspectos christãos e patrioticos), retrata o conflito armado, em que o "mundo se transmudou em colossal lioneira de feras", como um choque de civilizações entre paganismo e cristianismo – ou, para usar as suas expressões, entre o "cesarismo pagão e o imperialismo dominador" e os "direitos das pequenas nações" e as "doutrinas fundamentais da civilização cristã".
Para alicerçar esta tese, que correspondia no essencial à linha defendida pela Igreja Católica em França, e mesmo por personalidades dos meios culturais como Charles Maurras ou Jean Cocteau (que a partir de 1914 lançou nas páginas do seu jornal, Le Mot, uma campanha contra a influência germânica na arte moderna), Fernando de Souza fornece exemplos terríficos do martírio de sacerdotes – como os do padre Vouaux, a quem um oficial alemão vazou os olhos com a ponta de uma espada ou o dos clérigos que leccionavam em Lovaina e foram encarcerados nus numa pocilga de porcos – e, bem assim, de inúmeras destruições sacrílegas perpetradas pelas tropas germânicas nos templos da Bélgica. não hesita em falar no surgimento de um "neo-paganismo", que mergulhava as suas raízes na "orgia filosófica" da Alemanha do século XIX, responsável pelo "atoleiro materialista" que legitimou a Kulturkampf bismarckiana.
Em contraste, são apresentadas as inúmeras iniciativas do Vaticano em prol da paz: a encíclica de 1 de Novembro de 1914; os discursos no Consistório em 22 de Janeiro e 6 de Dezembro de 1915; a nota de Gasparri de 6 de Julho de 1915; a carta de 4 de Março de 1916 ao Cardeal Vigário de Roma; o encontro do cardeal Mercier com o Papa, no princípio de 1916, no decurso do qual é entregue ao Santo Padre uma carta colectiva do Episcopado belga; a nota pontifical de 5 de Maio de 1917 dirigida por Bento XV ao cardeal Gasparri.

O afervoramento da crença religiosa é a fonte por excelência da força moral, do desprezo dos perigos, da aceitação da morte para bem servir a pátria. Quem pode, com verdade, negá-lo?

Fernando de Souza exalta ainda o papel de figuras católicas como o cardeal Mercier, Mons. Braudillart, reitor do Instituto Católico de Paris, o cardeal Luson, de Reims, e, bem assim, de personalidades como Barrès ou Clémenceau. Sustenta ainda, numa argumentação que ocupa diversas páginas, a matriz essencialmente católica do direito das gentes, que a Alemanha desrespeitara, e a tese de que a Maçonaria e suas figuras de proa, como Magalhães Lima, eram germanófilas. A resposta ao avanço da ímpia Germânia – que, entre o mais, punha em causa o "renascimento católico" que se vivia em França, como acentuou Artur Bívar – só poderia ser encontrada na fé: "O afervoramento da crença religiosa é a fonte por excelência da força moral, do desprezo dos perigos, da aceitação da morte para bem servir a pátria. Quem pode, com verdade, negá-lo?". Nesse sentido, e virando-se para a realidade portuguesa, Fernando de Souza pede aos católicos que rezem pelos combatentes ("oremos pelos nossos valentes soldados. Que Deus os proteja e lhes dê a vitória final")  e enaltece o papel da assistência religiosa em campanha e das iniciativas lançadas pelos fiéis: as madrinhas de guerra ("a caritativa influência da madrinha torna mais familiar ao soldado o pensamento de Deus"), a Festa da Flor, a Liga de Acção Social Cristã, a Comissão Pro-Pátria, do Brasil, a Liga Nacional, presidida pelo conde de Bertiandos, a Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha, fundada em Fevereiro de 1917, que tinha como presidente o arcebispo de Mitilene e como vice-presidente Aires de Ornellas, contando ainda nos seus corpos dirigentes com personalidades como o conde das Alcáçovas, Mons. Amadeu Ruas, os cónegos António Moita, Aires Pacheco e Martins Pontes, o conde de Caria, Henrique de Mendonça, Tomás de Mello Breyner, Domingos Pinto Coelho, Lino Neto, Pereira dos Reis, D. António Serpa Pimentel e D. Thomaz Manoel de Vilhena. E é com regozijo que Fernando de Souza dá conta da presença das autoridades civis, com destaque para o Chefe do Estado e o Governo, em actos religiosos ligados à participação de Portugal na Guerra, como as exéquias celebradas na Sé em 16 de Maio de 1918 ou o Te Deum de 24 de Novembro do mesmo ano.
Isto não comprova a ideia de que foi a Grande Guerra que autonomizou os católicos da órbita monárquica, mas é um bom testemunho de que, além do que se passava na frente de combate, o conflito tinha consequências no plano interno, nomeadamente o claro alinhamento dos católicos com a causa dos Aliados.
A vitória destes daria um contributo decisivo para o "renascimento católico" dos anos subsequentes – e para a afirmação pública de certas personalidades ligadas à Igreja. Entre todos, destacou-se um nome: António de Oliveira Salazar.

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