O cabo das tormentas


Inês Teotónio Pereira | ionline 2014.08.30
Nós, pobres pais, só sabemos ser pais de crianças. Ser pai de jovens é uma contradição.
Dizia-me um amigo, num tom ligeiramente exasperado, a propósito das primeiras saídas à noite do filho de 15 anos: "Se ele se lembra de fazer um terço das asneiras que eu fiz quando tinha a idade dele, desfaço-o e ponho--o de castigo para sempre". Eu, tal como o meu amigo, também tenho pânico da juventude dos meus filhos. A juventude deles é uma espécie de Cabo das Tormentas dos pais: não fazemos ideia dos monstros que lhes podem aparecer , mas sabemos que para continuar a viagem temos de passar por lá. O meu amigo está quase a virar o Cabo e está compreensivelmente aterrado. Ele sabe que a sua passagem teve alguma dose de sorte e que o facto de não ter naufragado algures na viagem, tem tanto de fortuna quanto de sapiência. E agora, tal como D. Manuel temia pelo destino das suas naus, também ele teme pela chegada do filho a bom porto. E o pior é a sensação de impotência. Ele sabe que há pouca coisa que possa fazer para garantir a segurança da cria. Resta-lhe os desabafos e as ameaças que não vai conseguir cumprir.
A juventude dos nossos filhos é a nossa prova de fogo, é quando ela chega que mostramos verdadeiramente aquilo que valemos: se somos de facto crescidinhos o suficiente para lidarmos com a situação ou se não passamos de adultos infantis e sem maturidade para enfrentar o desafio. É nesta fase que se exige o impossível aos pais, ou seja, que não façam nada porque não há nada que se possa fazer. Ora, nós não nascemos para ficar quietos a ver os nossos filhos crescerem. Não faz parte da nossa natureza paternal sermos meros espectadores da vida dos nossos filhos. Nós temos de saber, temos de ver, temos de intervir, de condicionar e de manipular cada um deles. Os filhos são nossos e como tal nós controlamos as vidas deles. Desde que eles são bebés que é assim. Não sabemos ser de outra maneira.
Enquanto eles são crianças o poder é todo nosso. Os pais são pais absolutos: ordenam, consolam, controlam e dispõem dos filhos como querem. Até nos casos em que os pais deixam que sejam os filhos a mandar em casa é por opção; são os pais que querem que eles mandem. É uma espécie de delegação de poderes. Eu ainda vivo nessa paz. Eu quero, posso e mando e eles, coitados, obedecem. Mas eu sei que um dia, um Verão, uma festa, um amigo, um acontecimento qualquer será o gatilho que vai fazer com que um deles saia da casca. De repente, a criança vai passar a ter vida própria e eu passo a ter um papel muito pouco relevante na vida dele. Por mais que queira e deseje, não o vou poder controlar. E isso aterroriza-me. Não estou preparada para abrir mão do meu poder e de conceder liberdade plena a nenhum dos meus filhos. Não saber tudo o que se passa na vida de cada um deles inquieta-me. Sim, tenho medo.
Pois, eu sei que é preciso confiar neles, deixá-los crescer, blá, blá, blá. Mas isso é teoria, na prática dói. E dói porque todos nós já passámos por lá e sabemos perfeitamente que não éramos de confiança. Quando os nossos pais nos diziam que confiavam em nós, encarávamos o voto de confiança como uma espécie de carta branca para a asneira. Entre as hormonas, a ansiedade de viver cada dia como se o mundo fosse acabar no dia seguinte e as certezas absolutas que nos toldavam o juízo, tudo podia acontecer.
Nós, pobres pais, só sabemos ser pais de crianças (e mesmo assim). Ser pai de jovens é uma contradição. É quase uma impossibilidade. Eles têm vontade própria, são determinados perante a maior estupidez, são teimosos e até têm uma linguagem própria. Eles querem e podem, enquanto que na infância eles querem mas só podem se nós deixarmos. Na juventude a nossa vontade é apenas indicativa. E ser pai é mandar.
Li uma reportagem no "Público" que revelava que existe um número considerável de crianças que nunca subiu escadas. Os pais têm medo que elas caiam por isso não arriscam e como podem impedir, impedem. E as criancinhas não têm sequer liberdade de darem uns trambolhões de vez em quando. Basicamente não sabem cair. Isto mostra até onde nós pais estamos dispostos a ir: não temos limites. Ao pé de nós, quaisquer serviços secretos ou polícia política são um grupo de nabos.
Mas a juventude dos nossos filhos troca-nos as voltas e limita de forma drástica os nossos poderes. O nosso poder tem os anos contados e acaba quando eles passam de crianças a jovens. Nós pais não preparamos os nossos filhos para a vida, nós só preparamos os nossos filhos para serem jovens, para eles passarem o Cabo da Tormentas. O resto da vida é mesmo deles. Por isso é que é tão importante que eles aprendam a subir escadas o quanto antes, enquanto a queda é apenas um bate cu.

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