O mundo esquecido que Pires Veloso representa

PAULO RANGEL Público | 19/08/2014
A sociedade civil que o mítico comandante da Região Militar do Norte tão bem representa, porque foi em certo momento o catalisador das suas ânsias, ansiedades e anseios, é afinal a sociedade civil que, por via de regra, sociólogos e outros académicos dão por inexistente em Portugal.
1. Morreu Pires Veloso. Não vou aqui evocar o militar, nem sequer o homem. O que me interessa ressaltar em Pires Veloso, mais do que o exacto lugar no processo revolucionário ou a dimensão ética da sua personalidade, é o mundo esquecido, ostensivamente esquecido, que ele representa. E curiosamente o mundo que ele representa, apesar de ele ter sido um militar, é o mundo da sociedade civil.
Uma sociedade civil, resistente, inconformada, organizada numa rede de malha densa. Uma sociedade civil que foi capaz de ousar a mudança e que o fez com plena consciência dos riscos. Uma sociedade civil que, pela sua acção quotidiana e discreta, típica de uma maioria silenciosa, foi capaz de impedir a deriva totalitária do PREC. Uma sociedade civil que, ainda que com aquele perfil discreto, mais de formiga do que de cigarra, não teve medo de encher as praças e as ruas nos momentos decisivos. António Pires Veloso, em mais do que um momento, foi o símbolo carismático dessa mobilização. O apoio que concitou e a força que recebeu não veio essencialmente dos quartéis; veio transversalmente desses pólos da sociedade civil.
2. Essa sociedade civil que o mítico comandante da Região Militar do Norte tão bem representa, porque foi em certo momento o catalisador das suas ânsias, ansiedades e anseios, é afinal a sociedade civil que, por via de regra, sociólogos e outros académicos dão por inexistente em Portugal. Sempre me suscitou grande perplexidade que a academia portuguesa, tão empenhada em estudar os grupúsculos de extrema-esquerda e o seu papel antes e depois da revolução, tão dedicada a investigar os crimes da polícia política e o destino posterior dos seus agentes, nunca se debruce sobre os movimentos e fenómenos sociais (ou, mais precisamente, sociológicos) que consubstanciaram o suporte à via moderada e pró-ocidental que saiu vencedora da querela revolucionária. Se fizesse esse estudo e se o fizesse cabal e competentemente, estou convencido que rapidamente se desvaneceria essa ideia feita de que Portugal não tem uma verdadeira sociedade civil ou de que a nossa sociedade civil é frágil, fruste e fraca. Quando se fala dessa mudança de curso no PREC, apenas emergem os nomes dos heróis militares (Ramalho Eanes, Jaime Neves e Pires Veloso) ou dos líderes políticos (à cabeça de todos, Mário Soares). Quando muito, surge o papel relevante do apoio de líderes políticos europeus e, em especial, do embaixador americano Franco Carlucci. Mas será plausível que uma tão significativa mudança não tivesse raízes, alicerces e alavancas no tecido social? Essa dita maioria silenciosa – que embora desejada por Spínola, só haveria de dar sinal de vida quase um ano mais tarde – não terá sido essencial para preparar o terreno em que as peripécias militares e estritamente políticas se haveriam de desenrolar?
3. Não tenho quaisquer dados científicos para corroborar esta minha intuição. Mas, pese embora a idade tenra, tenho a memória e a experiência, para lá do enorme número de testemunhos, de quem viveu o quotidiano empenhadíssimo de muitas famílias no Norte do país. O primeiro dado que habitualmente se despreza é o de o crescimento económico dos anos 60 e o marcelismo terem criado uma classe média burguesa com aspirações económicas e culturais. Uma classe média emergente que será, nos tempos conturbados da revolução, uma aliada objectiva de uma classe das famílias tradicionais, abastadas e de perfil aristocrático e, bem assim, de uma classe média ilustrada com frequência universitária (uma espécie de nobreza de toga, nem sempre coincidente com aquelas outras duas). Nestes estratos figuravam os pequenos e médios comerciantes, os funcionários públicos de perfil médio ou alto, os professores, os vendedores comissionistas, as profissões liberais, empresários, concessionários e agentes, os quadros médios e altos das empresas. Os três estratos – que, por comodidade, designaria por burguesia emergente, aristocracia tradicional e letrados – serão aliados altamente cooperantes nos períodos mais agitados. E virão essencialmente a sê-lo em torno de uma instituição: a escola. A escola dos filhos, seja a primária, a preparatória ou a liceal. Aí pontifica uma organização, as associações de pais que, em muitos casos, vai ser não apenas um regulador do caos reinante no ensino, mas a verdadeira célula de mobilização política destes sectores.
Se a escola era o espaço de encontro ou convergência, a Igreja com a sua sofisticada rede de penetração tinha sido o "articulador" e "doutrinador" desta solidariedade. Em especial, depois do Vaticano II, multiplicaram-se as redes de grupos cristãos muito voltados para aqueles nichos sociais (lembrem-se os "cursos de cristantande" ou as "equipas de nossa Senhora" ou, nas proximidades da Igreja, o movimento da Escola de Pais Nacional). Mesmo o fenómeno das associações de pais começou nos colégios católicos e, já depois do 25 de abril, foi replicado para as escolas públicas.
4. Lembro-me de o meu pai ter sido simultaneamente membro da direcção de três associações de pais (uma por cada filho e em cada escola), com três reuniões nocturnas por semana, em que se discutia tudo, desde os professores que decretavam recreio em tempo de aulas ou leccionavam português cursando medicina até à política mais pura e dura. Lembro-me de, por várias vezes, rumar à Avenida dos Aliados com toda a família para manifestações de apoio a Pires Veloso e à sua linha, contra o "Vasco Gonçalves, o Corvacho e o Fabião". E de no caminho termos de passar pelas barricadas do PC e de grupos da extrema-esquerda, queimando bandeiras e ameaçando os carros. Os pais não resguardavam os filhos, por mais novos que fossem. Os valores em causa eram demasiado importantes para alguém ficar em casa. É esse o mundo – que anda esquecido ou que alguém quer fazer esquecer – que Pires Veloso representa e que aqui lhe presta homenagem.

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