Robin Williams, a noite e o riso

JOÃO MIGUEL TAVARES Público, 14/08/2014

Robin Williams era o tipo que se estava sempre a rir, e nós não podemos esperar do tipo que se está sempre a rir, do homem mais bem-disposto da sala, da máquina de produzir gargalhadas, do humorista destravado, excessivo e imparável, que pegue num cinto para se enforcar, aos 63 anos de idade. Ele não. Ele era o tipo divertido.
Infelizmente, a distracção é nossa: não há qualquer relação entre o riso e a felicidade. Ou se há, é uma relação contrária à que se poderia esperar. O humor é uma arma para enfrentar o absurdo da vida e uma das mais elevadas provas da nossa inteligência. O riso é a nossa defesa contra a consciência da finitude e o instrumento privilegiado para espantar a morte; é, digamos assim, o paliativo que Deus encontrou para que conseguíssemos enfrentar o mais abstruso dos dilemas da criação: "Terás em simultâneo a consciência da morte e o desejo de imortalidade. Vai ser terrível. Mas Eu vou deixar que te rias disso."
E nós rimos, claro. E o riso ajuda-nos a suportar dores, tristezas, melancolias. Mas o bom humorista não tem a mesma sorte - ele está demasiado perto da matéria que queima, vê com demasiada clareza o absurdo da vida. É por isso que nos faz rir: tem um acesso privilegiado ao código do mundo, aponta o dedo à mecânica silenciosa do quotidiano e desmonta as suas peças, a sua arte consiste em chamar a atenção para um certo tipo de óbvio (tiques, truques, hábitos, rituais) que nós não vislumbramos. Todo o grande humorista tem um acréscimo de lucidez. E esse excesso de lucidez empurra-o, com assustadora frequência, para os braços da tristeza e da depressão. Demasiado lúcido para ser feliz.
Repare-se na biografia habitual dos grandes humoristas: filhos únicos, caixas de óculos, miúdos privilegiados mas solitários, pouco sociáveis, gordos, onanistas, nerds, tipos que na adolescência só se conseguem integrar através do humor - o riso é o cavalo de Tróia que lhes permite entrar no mundo. Reparem também como praticamente não há homens (nem mulheres) bonitos no humor. Robin Williams não era bonito, tal como não o são Jim Carrey, Jerry Seinfeld, Louis CK, John Cleese, Bill Murray, Seth Rogen, Tina Fey, Sarah Silverman. A lista é infindável. Para se ser alguém na vida, pode ser de uma certa utilidade ficar fechado em casa na adolescência, sem acesso a festas, nem a miúdas. E essa solidão, esse rasto de clausura, muitas vezes fica lá, e nem Hollywood, nem uma família - ou três casamentos, no caso de Robin Williams - conseguem apagar.
Não há nada de relevante que possamos escrever sobre alguém que se mata - mas ficar em silêncio parece-me cumplicidade com a morte. Eu sou da geração Clube dos Poetas Mortos, filme que nunca me atrevi a rever, porque tenho a certeza de que é muito pior do que a memória que guardo dele. E é impossível ser dessa geração sem ficar profundamente tocado com o suicídio de Robin Williams. Ele foi um extraordinário actor sem nunca ter feito um extraordinário filme, mas para mim será sempre o professor que levou os alunos a subirem para as mesas, que me apresentou Leaves of Grass, e me ensinou o significado das palavras "carpe diem". O capitão, como no poema de Whitman, jaz agora morto, mas ao contrário do poema de Whitman, não houve gesta heróica, nem há razões para celebrar. Robin Williams mentiu: aproveitar apenas o dia não chega. Precisamos todos de alguma coisa que nos sustenha, quando o dia acaba e o riso não sai.

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