As saudades

 vitorcunha | Blasfémias | 3 SETEMBRO, 2014

A língua portuguesa tem a honra duvidosa de, alegadamente, ser a única com uma palavra capaz de expressar o sentimento de "saudade". Mesmo correndo o risco de qualquer linguista me contradizer, parece-me que a questão está mal abordada. O problema é que "saudade" não é verdadeiramente um sentimento, nem em Portugal, nem em lado algum. Várias línguas expressam melancolia (essa sim, é um sentimento) através de um verbo (I miss my dad), o que implica tratar-se de uma acção ou, em alternativa, de uma mudança de estado, uma alteração em relação ao estado normal. Em Portugal optamos pelo substantivo, algo que nos permite a inacção através do verbo "sentir". Uma pessoa sente saudades, como sente frio, como sente fome. Além da tendência para o melodramático, atribuir a um verbo que implica uma acção o distinto prazer da subjectividade de um substantivo próprio, ainda por cima (alegadamente) não passível de tradução, permite-nos sentir coisas que não lembram ao Diabo, como etéreas saudades (só isto dispensa definição) de algo que nunca tivemos.
Um inglês diz que lhe falta algo (I miss dad) enquanto um português diz que tem saudades; ou seja, a ausência transforma-se em aquisição, uma pessoa passa a ter algo que não tinha antes. De uma certa forma, parece que se ganha com a perda, algo que me parece um excelente negócio, nem que no mundo da fantasia lírica do português.
Esta é uma das explicações para o frenesim em torno das primárias do PS e da vaga de fumo (imagem apropriada) para o salvador que se anuncia. Temos saudades do PS no governo, saudades do tempo em que se gastavam os impostos actuais e futuros, saudades da mentira como esperança e saudades de ter saudades de alguma coisa que imaginamos ter acontecido quando achávamos que tudo era mau na mesma mas que agora nos parece o Paraíso que nunca reconhecemos.
Por tudo isto, a crise é benéfica. Podem ter perdido rendimento mas, com isso, ganharam algo, passaram a possuir a saudade de quando tinham mais rendimento. Se fosse a vós consideraria começar a aproveitar o Paraíso de hoje porque, muito certamente, e muito em breve, terão saudades de 2014.

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