Fé e Ciência em conflito: ainda nisto?!

Nuno CB | senza pagare | 2014.09.10 

Fui a semana passada ao Encontro Internacional da European Society for the History of Science (4 a 6 de Setembro'14), que aconteceu em Lisboa, na faculdade de ciências, cidade universitária. Estiveram cá reunidos, na "pequena" cidade de Lisboa, alguns dos maiores especialistas do mundo em História da Ciência. Os muitos conferencistas vieram de países tão distantes como a Nova Zelândia ou os Estados Unidos mas também de todos os cantos da Europa, desde a Grécia à Irlanda.

Foram apresentados imensos temas de muitas áreas diferentes - da física à medicina -, e de diversas épocas distintas - desde a ciência dos Antigos (Aristóteles e outros) até aos tempos mais modernos do início da Mecânica Quântica no século XX.

O encontro funcionou como a maior parte dos bons encontros académicos dos dias de hoje: durante o dia inteiro houve painéis, de três ou quatro conferências cada, a decorrer em salas diferentes e quem ia assistir limitava-se a escolher a que conferência queria ir, em detrimento de outras.

Ora, um dos painéis que teve mais destaque foi o painel onde as conferências tinham todas a ver com ciência e religião. Digo que teve destaque por ter sido logo no primeiro dia, por ter ocupado dois buracos do horário (foi um "duplo" painel) e por ter sido colocado num auditório, enquanto a grande maioria dos painés estavam em salas normais da faculdade de ciências (que, digo já, não são nada más).

Além disso, alguns dos investigadores que apresentaram neste painel já eram seniors e com uma categoria académica superior.

Neste post não quero de todo aprofundar os conteúdos que foram falados nessa tarde nem sequer mencionar todas as conferências que houve. Vou só apresentar alguns factos que mostram como o meio académico da história das ciências trata a Fé e a Ciência e como é surpreendente que no mundo de hoje a maior parte das pessoas ainda acredite que Fé e Ciência são incompatíveis.




Mas julguem por vós mesmos:

1. A primeira conferência deste painel foi dada pelo norte-americano Ronald Numbers, professor emérito do Departamento de História das Ciências da Universidade de Wisconsin. Este é provavelmente o melhor departamento para se trabalhar em história da ciência na Idade Média e nos séculos XVI e XVII.

O tema da conferência dele tinha a ver com dinossauros, mas nem vale a pena falar sobre isso. Queria antes mostrar alguns dos trabalhos mais famosos dele. Este professor, publicamente conhecido como agnóstico, publicou pela Chicago University Press o livro Quando a Ciência e o Cristianismo se encontram (When Science and Christianity Meet) e pela universidade de Harvard o livro Galileu na prisão e outros Mitos sobre Ciência e Religião (Galileo Goes to Jail and other Myths about Science and Religion), que também está traduzido para português pela Gradiva.

Este último livro é uma participação conjunta de alguns dos melhores historiadores da ciência vivos. Cada um escreveu um artigo e o Ronald Numbers foi o organizador e escreveu um dos artigos. É, portanto, uma publicação académica e não um simples livro de divulgação. Cada artigo corresponde a um mito que é desmontado. Vou deixar aqui alguns, tirados do índice do livro:

Mito 1. A ascensão do Cristianismo foi responsável pela morte da ciência antiga;
Mito 2. A Igreja medieval impediu o desenvolvimeno da ciência;
Mito 3. Os cristãos medievais ensinaram que a Terra era plana;
Mito 7. Giordano Bruno foi o primeiro mártir da ciência moderna;
Mito 10. A revolução científica libertou a ciência da religião;
Mito 11. Os católicos não contribuíram para a produção científica;
Mito 13. A cosmologia mecanicista de Newton eliminou a necessidade de Deus;
e etc.

Notem especialmente o mito 7: basicamente significa que o primeiro episódio da nova série Cosmos do Neil deGrasse Tyson começou com uma mentira - a de que Giordano Bruno foi um mártir da ciência. Sabe-se hoje que Giordano Bruno não passou de um feiticeiro que usava a teoria de Copérnico para defender as suas magias, não havia ciência ali.

Na verdade, na introdução do livro, Ronald Numbers, que não é cristão, afirma que "nenhum cientista, tanto quanto é do nosso conhecimento, alguma vez perdeu a vida devido aos seus pontos de vista científicos".

2. A segunda conferência foi dada por Stephen Gaukroger, professor de história das ciências na universidade de Sydney, doutorado em Cambridge. O tema de que ele falou foi "O conceito "pré"-moderno de doutrina científica e as suas origens no Cristianismo" ("The Early-Modern Idea Of Scientific Doctrine And Its Origins In Christianity").

Gaukroger tem estado a publicar uma série de livros profundos sobre a ciência e a maneira que os homens têm hoje de pensar sobre as coisas. Basicamente, e muito resumido, é uma maneira de explicar como é que o desenvolvimento científico ocidental domina hoje o mundo inteiro.

O mais interessante é que o seu primeiro volume, The Emergence of a Scientific Culture, foi descrito na Revista Britânica de História das Ciência (muito conceituada) como um livro excelente por descrever tão bem o papel fundamental do Cristianismo no aparecimento da ciência moderna. O livro mostra que, ao contrário de ter criado separação, a relação entre Cristianismo e filosofia natural floresceu e foi muito positiva para desenvolver a ciência tal como hoje a conhecemos.


3. Para acabar, uma das conferências da segunda parte foi apresentada por um historiador da Bélgica, um rapaz bastante novo até. O tema da sua conferência foi "As repostas Católicas ao Evolucionismo, 1859-2009: Influências locais e padrões de média-escala", em que basicamente mostrou que a relação entre a Igreja Católica e a teoria do evolucionismo foi muito pouco problemática e hoje em dia é praticamente nula, ao contrário de muitas comunidades protestantes.
Esta apresentação foi um resumo de um paper publicado o ano passado na revista Journal of Religious History, aqui.

Ou seja, no fundo vemos que a relação entre a Fé e a Ciência é tão interessante ao ponto de ser apresentado por diferentes nomes num dos maiores congressos académicos de História da Ciência. Por outro lado vemos que aquilo que se diz sobre conflitos entre Fé e Ciência é assustador porque não passa de um grande engano, já há muito conhecido.

Nuno CB

[este texto não tem pretensão nenhuma de ser académico, mas de carácter apologético]

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