Ser do contra é ser mais claro

Hoje ser contra o aborto é necessariamente estar pronto para estar sozinho em muitas multidões. Não pelo prazer de ser a excepção. Mas pela clareza de transmitir que há maiorias que pensam assim e nós pensamos assado.
RR online 03-10-2014 15:44 por Tiago Cavaco, pastor baptista e músico


É natural que a caminhada de sábado seja pela vida. É recomendável até que a mensagem seja a favor de alguma coisa. Causas pela negativa tendem a ter pernas curtas. Num primeiro momento juntam muitas pessoas (é fácil ser do contra), mas num segundo revelam-se fracas para continuar a unir aqueles que se juntaram (é fácil ser do contra contra quem é do contra). Quando o assunto é o aborto creio, todavia, que compensa não esconder as minhas convicções que se fazem pela negativa. Para isto fui ajudado por um amigo, o Filipe Costa Almeida. Ele ajudou-me a entender que ser a favor da vida pode ser demasiado pouco para uma cultura com muita facilidade em relativizar. Não podemos esquecer que não é difícil ser a favor do aborto a partir de argumentos tão hiper-maleáveis como a qualidade de vida. Daí que ser do contra nestas matérias me pareça intelectualmente mais claro. 

Fui do contra quando em 1998 se fez o referendo sobre a despenalização do aborto. Na altura era um estudante universitário. Andava na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Se a ideologia servisse de baliza para o Ensino Superior a Nova era o poste esquerdo. Como sobrevive na FCSH um estudante que é contra o aborto? Na clandestinidade ou na frente. Não posso propriamente dizer que o meu exemplo tenha tido o heroísmo de um desembarque na Normandia. Mas ao mesmo tempo não posso negar que, para alguém de instinto pouco corajoso como eu, ter-me levantado da assistência de um colóquio dado pela Odete Santos para discordar de um auditório esmagadoramente pró-aborto foi certamente uma experiência a não esquecer. Hoje ser contra o aborto é necessariamente estar pronto para estar sozinho em muitas multidões. Não pelo prazer de ser a excepção. Mas pela clareza de transmitir que há maiorias que pensam assim e nós pensamos assado. 

Tenho sido do contra em muitas outras discussões depois de 1998. Não é fácil ser contra a multidão mas é mais difícil ainda ser contra um apenas que amamos. Mal por mal, com a derrota no referendo, parece que perdiam a pertinência essas discussões difíceis com pessoas importantes para nós e que não defendem a nossa posição. O que aconteceu comigo até há mais ou menos um ano é que me sentia meio aliviado. Mas ter ficado de consciência tranquila por ter votado contra o aborto em 1998 e 2007 não me estava a livrar de uma consciência perturbada por esse estranho alívio. O povo ter votado estava a votar-me a uma confortável resignação. Receio que não seja o único a sentir-se assim. Entretanto cheguei à conclusão que, mais do que nunca até agora, era imperativo não largar o assunto. Ser do contra mesmo quando ser do contra parece que não leva a lugar nenhum. Às vezes é quando se é do contra, quando ser do contra parece que não leva a lugar nenhum, que realmente vamos a algum lugar. Hoje ir a uma caminhada contra o aborto parece-me muito mais necessário do que quando a lei era outra. 

Quando sei aquilo contra qual estou provavelmente torno-me mais pronto a ajudar. Escrevo isto enquanto Pastor. Sei o que é ter de afirmar a maldade do aborto a alguém que já o fez. E reconheço que muitas vezes as pessoas de fé, na pressa de mostrarem aquilo em que crêem, não são cuidadosas. Ser contra o aborto não é ser contra as pessoas que o fizeram. Mas é explicar-lhes que elas não foram as únicas envolvidas nele. As vidas destruídas antes do nascimento exigem-nos uma coragem de clareza moral bem como uma oportunidade para o perdão. Haverá quem perante a palavra perdão me possa acusar de condescendência e arrogância. Mas creio que o que a palavra perdão nos permite é revelarmo-nos como seres humanos que reconhecem valores superiores a nós mesmos. Quando acredito na diferença entre fazer uma coisa boa e fazer uma coisa má, não me coloco acima dos outros. Coloco-me debaixo de valores mais altos que eu. 

Ser contra o aborto agora é ter de conviver com a acusação de querer voltar atrás no tempo. Mas não estou assim tão convencido que o futuro é favorável ao aborto. Penso que boa parte do direito ao aborto foi mais ganho no terreno da indiferença que no do princípio. A pergunta há uns anos era: quem sou eu para achar que alguém deve ser culpado criminalmente pelo aborto? Foi neste ambiente emocional que os países mudaram as suas leis quanto ao assunto, não necessariamente numa transição ideológica assumida. Creio que há menos liberais autênticos do que julgamos. O nosso liberalismo moral é sobretudo querermos estar livres de discussões exigentes. E esta é também uma razão pela qual ainda acredito na luta contra o aborto. Chamem-me ingénuo mas estou convicto que grande parte das pessoas que são a seu favor nunca pensou profundamente no assunto. Quero contribuir para que mudem a sua posição. 

Sou cristão e os cristãos foram do contra. Por serem do contra viraram-se contra o aborto quando o aborto era uma notícia velha. Desde que o mundo é mundo que se aborta. Aliás, desde que o mundo é mundo que o princípio do aborto se aplicava sem complexos depois do nascimento. O infanticídio ou simples abandono de crianças eram práticas comuns do paganismo. Foram esquecidas sobretudo por causa da mudança que o cristianismo trouxe. O cristianismo arrasou com a lógica utilitária das pessoas fazerem o que querem de acordo com o que querem. Porque a partir do momento que se crê que Deus não só existe como se fez em homem em Jesus, os homens que o seguem querem ser homens de acordo com o homem-Deus Jesus. Os modelos humanos passam a ser um resultado dos modelos divinos. A transcendência não é uma desculpa para a abstracção. A transcendência passa a ser a referência mais credível para o que é deste mundo. O que é possível fazer deixa de ser o que conseguimos mas passa a ser o que Cristo conseguiu. 

Os cristãos, por serem do contra, não se resignaram com o que era comum. Começaram a ir aos arredores das cidades e a resgatar crianças abandonadas, deficientes, e a cuidarem fisicamente de todos os que pudessem. A solidariedade dos cristãos não foi uma fagulha que se acendeu porque, bem lá no fundinho, somos todos pessoas com um grão de bondade. Não. Os cristãos passaram a ter um comportamento que contrastava com os hábitos pagãos porque Cristo teve esse comportamento. Os cristãos não mudaram o mundo por quererem ser criativos ou diferentes. Os cristãos mudaram o mundo por quererem imitar Cristo. Dizia que o aborto é notícia velha. E é uma notícia velha porque pertence a um mundo velho. Não é pelo facto de muitos hábitos pagãos aparecerem recauchutados que eles representam progresso. Os cristãos são contra o aborto porque pertencem a um mundo que consideram novo. Não é estranho que tantos, ao caminharem contra o aborto, pareçam caminhar por um mundo retrógrado? É. É estranho e mentiroso. Porque de facto caminhar contra o aborto é mais do que insistir no valor da vida. É insistir no valor da novidade.

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