Eu coelha me confesso

Inês Teotónio Pereira, ionline, 2015.01.31

Foi preciso o Papa falar de coelhos para que todos percebessem que estavam errados... Bastou uma frase e um estilo diferente
Esta crónica está atrasada uma semana: esta semana já ninguém fala de revoluções na Igreja motivadas pelas declarações do Papa nas Filipinas. Mas a culpa não é minha, o concerto da Violetta foi a semana passada e não controlei o impulso de escrever sobre o fenómeno. Posto isto, passemos ao Papa. Disse o Papa: "Alguns pensam, e desculpem o termo, que para sermos bons católicos temos de ser como coelhos. Mas não." Esta declaração, e a utilização desta linguagem, foi notícia em todo o mundo. E foi notícia por duas razões: a primeira, porque ninguém sabia que a Igreja considera irrelevante o número de filhos das suas ovelhas e que a quantidade não diz nada sobre a qualidade de um católico; a segunda razão, porque se adivinhou que vinha daí uma viragem dos princípios e que agora, com o Papa Francisco, os preservativos passariam a ser distribuídos nas igrejas. Mas nada como esperar uma semana para se perceber que afinal as notícias é que são a verdadeira notícia.

Quanto à primeira razão, a história dos coelhos, o que o Papa Francisco fez, falando a propósito de uma filipina que vai a caminho da oitava cesariana pondo em risco a sua vida, foi dizer o óbvio. Ter filhos não é sinónimo de nada espiritualmente relevante e muitas vezes é até sinónimo de irresponsabilidade. Considerar isto uma novidade doutrinária revela que os preceitos e preconceitos que existem nos católicos e sobre os católicos são muitos e alguns deles estão mesmo cristalizados.

É claro para toda a gente que me conhece minimamente que eu não tenho nada de Madre Teresa de Calcutá, apesar de ter seis filhos, e quem me conhece melhor sabe perfeitamente que os meus seis filhos, em vez de me levarem à santidade, levam-me mesmo a pecar várias vezes ao dia em pensamentos, actos e omissões (basta passarem em minha casa num fim de tarde ou no fim de umas férias para o confirmarem). Graças a Deus que tenho a noção de que Deus não me tem em melhor consideração do que a uma mãe de um só filho. Mas é verdade que nem toda a gente pensa assim. Muitos não-católicos acham que os católicos que controlam a natalidade são hipócritas e os aqueles que têm muitos filhos beatos; já os católicos acham que vivem em pecado por não terem os filhos que "Deus quiser" e consideram os pais de famílias numerosas verdadeiros modelos de virtude.

Foi preciso o Papa falar de coelhos para que todos percebessem que estavam errados. Não foi preciso rever o catecismo ou publicar novas encíclicas, bastou uma frase e um estilo diferente.

A segunda razão que fez com que esta frase fosse notícia foi considerar que a Igreja estava a revogar toda a sua doutrina sobre a contracepção. Rapidamente se percebeu que não. E percebeu-se ainda que, não sendo incoerente a frase do Papa com a posição da Igreja face a este tema polémico, quer dizer que as razões que levam a Igreja a não incentivar, aceitar ou defender os métodos contraceptivos nada tem a ver com o número de filhos mas sim com a questão da conduta e vivência sexual defendida pelas várias encíclicas.

Nada de novo. A única novidade é o estilo que vai desvendando coisas antigas. E é aqui que o papa Francisco está a fazer a grande revolução: traduzir a Igreja e revelar a sua essência. Explicar que a Igreja não julga, apenas acolhe, e que não existem categorias de católicos, de crentes ou de não crentes: somos todos pecadores e somos todos boa gente. Se se quiser fazer uma tabela, o número de filhos não é certamente uma variável a ter em conta.


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