Gula, o desejo devorador

José Luís Nunes Martins
ionline 2015.01.25

O açúcar e o álcool permitem um quase esquecimento dos planos a longo prazo. Aposta-se tudo no agora e despreza-se o que vem depois.
Muitas pessoas tentam compensar as suas carências emocionais através dos bens materiais. Há quem coma e beba para assim tentar preencher os seus desertos interiores, para dessa forma se evadir da realidade.

O açúcar e o álcool permitem um quase esquecimento dos planos a longo prazo. Aposta-se tudo no agora e despreza-se o que vem depois. Mas, na verdade, há sempre um depois... e será tanto pior, quanto menos nos preocuparmos com ele.

A procura excessiva de satisfações materiais, em especial através da comida e bebida, revela vazios tremendos e valores trocados. Devemos alimentarmo-nos para viver e não o contrário. O que devemos integrar em nós, o que nos faz ser maiores e melhores, não é o que conseguirmos devorar. Isso apenas nos incha... de um vazio cada vez maior.

Pouco importa se é pelo excesso de quantidade, pela exigência da qualidade, pelo requinte da preparação, pelo preço, ou até pela forma ávida com que se come e bebe, sem que sequer se permite saborear (chegam a chamar-lhe comida rápida), a gula é sempre uma paixão desordenada e exigente, uma espécie de requinte que é, na verdade, um verdadeiro veneno para a nossa felicidade.

A gula é um vício que não costuma envergonhar quem o tem. Há até quem assuma a sua capacidade de devorar tudo sem qualquer timidez, de sorriso nos lábios... ser guloso chega mesmo a apresentar-se como uma qualidade!

Hoje cultiva-se o corpo, como se não fossemos nós algo muito mais profundo. O resultado é quase sempre desastroso: quem tem um corpo escultural, julga que isso é tudo quanto importa; quem o não tem, julga que isso é sinal de que não tem valor algum.

É frequente que o corpo e o espírito se encontrem em conflito. Importa respeitar o corpo, mas sem qualquer tipo de submissão aos seus caprichos. São alimentos, necessidades e interesses diferentes, mas o espírito tem de dominar o corpo.

Há quem embeleze o seu exterior a fim de ultrapassar algumas dimensões menos boas do interior, e há quem aposte no equilíbrio do que está na base do seu ser, moderando sempre os seus impulsos e não se deixando devorar pelos seus próprios desejos.   

Quem se entrega desregradamente à comida e à bebida perde a capacidade de saborear os detalhes... os temperos... Mas a temperança é o equilíbrio. Uma ordem saudável onde tudo tem o seu lugar e valor. Nunca menos do que se necessita, nem mais do que é conveniente.

Talvez não seja um problema grave que alguém se delicie com um bombom cujo custo daria para comprar pão para a refeição de uma família inteira. O problema grave será comer uma caixa inteira e, ainda assim, não ficar satisfeito...

Num mundo em que sofrem e morrem de fome milhões de pessoas, talvez não seja estranho que a obesidade seja também um problema. O mundo está desequilibrado. Há também quem sofra de fome por estimar mais aquilo que uma imagem de si que deseja do que a sua saúde e paz. Um dos piores males da gula é que impede, os que ela consegue devorar, de pensarem e ajudarem todos os seres humanos a quem falta o essencial.

É algo estranho que seja quem mais tem, quem mais ainda queira ter... a lógica do consumo é linear e bruta: absorver e destruir, a fim de poder sempre consumir mais... absorver e destruir... absorver e destruir... uma fome insaciável que corrói por dentro. Uma úlcera.

As sensações não são emoções. Pouco do que nos chega através dos sentidos, nos enche o coração. O prazer não é a felicidade.

Importa saborear a vida e tudo quanto nela há de bom, deliciarmo-nos com a bondade do mundo ao nosso alcance. O pão nosso de cada dia é algo tão essencial quanto excelente!


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