Hoje somos todos redactores do "Hebdo"

RR online 08-01-2015 14:06 por Graça Franco

Como disse Adriano Moreira na Renascença, esta quarta-feira, em Paris, "fomos todos atacados" e fomo-lo no "coração" da nossa civilização.Hoje sou também redactora do "Charlie Hebdo". Nunca imaginei escrevê-lo. Não me revejo na sátira desbragada e mordaz que caracteriza um certo tipo de jornalismo e menos ainda na fúria ferozmente anti-religiosa que constitui o seu subgénero mais comum. Não gosto que gozem com a minha religião e por isso não me agradam brincadeiras com a religião dos outros, que considero sempre que passam os limites das minhas linhas vermelhas.

Não gosto do humor provocatório que agrega à louvável acutilância na análise livre e independente uma dose para mim sempre excessiva de sobranceria de quem dúvida sobre os que ousam acreditar. A velha saga do cepticismo dos modernos cultos contra a crença ingénua dos retrógrados pacóvios. Ainda assim, e embora defensora de um debate sem tabus sobre os limites do bom senso e de bom gosto, que penso que deveriam nortear a imprensa livre, estou hoje ao lado dos que morreram pelo direito de dizer, quase sempre, o oposto do que eu própria diria. Disposta a dar a minha própria vida em defesa da sua liberdade de pensamento e consciência.

É isso defender a verdadeira liberdade de expressão e imprensa. Como Adriano Moreira dizia esta quinta-feira na Renascença, em Paris "fomos todos atacados" e fomo-lo no "coração" da nossa civilização. Neste preciosa noção de liberdade onde entronca a própria liberdade de consciência e por consequência a própria liberdade religiosa (quer esta se traduza no direito à crença ou à descrença). Liberdade que não enforma apenas a República, como dizia Hollande, mas a própria cultura europeia na sua raiz mais funda e judaico-cristã.

Não por acaso este ataque tem como primeira e principal vítima a própria comunidade muçulmana radicada entre nós. Daí a importância da condenação unânime dos seus principais líderes ao ataque bárbaro e brutal cometido falsamente em nome do Islão e dos seus valores. Esta quarta-feira, na Renascença, foram particularmente duras as palavras de condenação do Xeique Munir. Quem não quer viver com a nossa liberdade deve "emigrar", mas "não dê mau nome ao Islão". É evidente que esta liberdade só pode tê-la um muçulmano porque dito por quem o não seja, cheira a xenofobia. E não é.

Mas o desafio está mal colocado. A questão é bem mais funda. Quem não quer viver com a nossa liberdade parte para onde? E queremos mesmo nós deixá-los partir? São os nossos filhos (nascidos e educados em Paris com passaportes franceses e portugueses ) que nos estão a atacar no solo e na Pátria que nos é comum. São eles que não hesitam em fazer de carrascos de polícias como Ahmed Marabe, provavelmente seus irmãos na fé, surdos aos seus pedidos de clemência. Não estamos a sofrer um ataque externo de gente que combate os nossos valores em nome de outros. Somos nós que estamos a ser devorados por esta pulsão suicida.

No ataque ao "Hebdo" não está apenas o ódio e a vingança de pretensos ofendidos. Está uma barbárie que progride na exclusão social das nossas periferias. Está o vazio que a nossa sociedade ocidental, céptica, individualista, pretensamente modernaça nos seus sem-valores, sem nada para oferecer a uma geração perdida no vazio e na ignorância alimentada de "reality shows" e pouco mais espelhada numa pobreza intelectual confrangedora.

É esta geração adormecida num caldo de consumismo frustrado e culto da trivialidade e ignorância que se traduz no alvo vulnerável de todo o obscurantismo, manipulação, e barbárie onde germina latente uma recusa de tudo a troco de nada. Se não pusermos cobro a esse vazio é a nossa civilização que se diluirá nele.

Se continuarmos a fechar os olhos à realidade sem termos coragem de olhar o espelho cruel que obras como as de Michel Houellebecq com o seu novo romance, "Submissão", vão colocando debaixo dos nossos olhos.

É verosímil um cenário em que em 2022 as presidenciais francesas sejam travadas entre a extrema-direita de Marine Le Pen e um potencial líder de um inventado partido muçulmano? É. Constatá-lo não nos pode levar a meter a cabeça na areia. Não podemos remeter o cenário para os catastrofismos populistas e xenófobos como a triste onda do Pegida em Dresden. Temos de perceber o porquê do desconforto que alimenta esta maré negra. Para lhe fazer frente travando-a enquanto é tempo.

Esta quarta-feira, Marine foi melhor do que o expectável ao defender de viva voz os muçulmanos franceses do anátema da responsabilidade geral do ataque. Mas na raiz do seu partido continua a germinar o ódio. E no outro lado da barreira ele também vai crescendo da sua perigosa versão de medo difuso do diferente e do desconhecido.

Tenho uma burca em casa que me ofereceram vinda do Afeganistão para poder utilizar em conferências. Visa permitir a quem ouse defender que aquele é um símbolo religioso ou um fato como outro qualquer que vivencie a experiência de se envolver nele. Não podemos permitir que as nossas filhas o usem, porque ele não apenas as esconde, esconde também um atentado à sua própria dignidade. Quem quer permanecer entre nós tem de aceitar algumas regras. A igualdade de género e a liberdade de expressão estão entre elas. Vale a pena dar as nossas vidas para as defender.

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