SER OU NÃO SER CHARLIE


Pedro Vaz Patto, Público, 2015.01.24

                  Foi com viva comoção que muitos assistiram à grande manifestação que se seguiu aos atentados de Paris, um grito de repúdio do terrorismo. A frase mais ouvida, Je suis Charlie, para muitos exprimia, antes de tudo, a solidariedade para com as vítimas, mesmo da parte de quem nunca se identificou com a linha ideológica do jornal Charlie Hébdo.
                  Mas por detrás dessa palavra de ordem também se nota a vontade de apresentar o estilo que tem caraterizado esse jornal (a sátira que não reconhece limites e ofende gravemente o que há de mais sagrado para crentes de várias religiões) como o ícone mais representativo da sociedade de liberdade e tolerância em que vivemos e queremos continuar a viver. Isto já não me parece aceitável.
                  Subjacente a esta ideia está um conceito de liberdade individualista, que não se detém diante do respeito pelo outro, pela sua dignidade e pela sua sensibilidade. Para esta visão, só a própria liberdade será sagrada; mas uma liberdade que se torna vazia, um fim em si mesmo e não um meio para alcançar a verdade e a realização pessoal no relacionamento com os outros.
                  A liberdade de expressão tem limites em qualquer sociedade livre e democrática.
                  Quem instiga à prática do crime e do terrorismo (como fazem alguns dos mentores de atos como os dos atentados de Paris) claramente ultrapassa esses limites. Nesta ocasião o próprio governo francês participou, pelo crime de propaganda do terrorismo, de um polémico ator, Dieudonné, que afirmou: Je suis Coulibaly (um dos autores de um dos atentados). Em Itália decorre atualmente uma campanha contra o racismo em que se afirma, numa alusão ao insulto racista: «as palavras também podem matar».  Em sistemas jurídicos como o português, a difamação e a injúria (isto é, a imputação a outrem de factos desonrosos e a emissão pública de juízos atentatórios da honra de outrem) são crime. Há que distinguir a crítica de atos, que deve ser livre, da ofensa que atinge a dignidade da pessoa visada, seja ela quem for.
                  O que é próprio das sociedades livres e democráticas é o livre debate de ideias. A crítica da religião islâmica, como a da religião cristã ou das religiões em geral, não pode deixar de ser livre. Nem há que temer esse debate e essa crítica, porque às ideias pode sempre responder-se com outras ideias, e a Verdade impõe-se por si, pela luz e força que lhe são intrínsecas. É diferente da crítica motivada às religiões a falta de respeito pelos símbolos e figuras tidos por sagrados, o achincalhar gratuito desses símbolos e figuras, a ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas. Às ideias pode responder-se com outras ideias e assim se gera o diálogo e o debate. Os insultos já saem fora do diálogo e do debate racional. Surge sempre a tentação de responder aos insultos com outros insultos, e assim se gera a violência verbal, que nada tem a ver com o debate que é próprio de sociedades livres e democráticas.
                  É verdade que os tribunais são cada vez mais reticentes no reconhecer o respeito pelos sentimentos religiosos das pessoas como limite à liberdade de expressão. Talvez isso se explique pelo peso da memória de épocas em que a religião serviu para limitar a liberdade de expressão de ideias, ou também por preconceito laicista (não liberal) contra a religião. Parece que há "dois pesos e duas medidas": aceitam-se mais facilmente limites à liberdade de expressão noutros âmbitos, como quando estão em causa discriminações em razão da raça, ou, mais recentemente, da orientação sexual (desapareceu a sátira a pessoas homossexuais que, há alguns anos, era muito comum em programas humorísticos, e isso é de saudar, mas já não o é a tentativa de limitar a expressão de ideias contrárias à prática homossexual).
                  Mas não pode ignorar-se que para muitas pessoas, não só uma ofensa verbal pode ferir mais do que uma ofensa física, como a ofensa ao que para elas é mais sagrado, aos seus sentimentos religiosos, fere mais do que uma ofensa à sua pessoa ou à sua família.
                  Nada disto justifica o homicídio terrorista, ou atenua a sua gravidade. Matar e odiar invocando o nome de Deus é também uma blasfémia (di-lo o Catecismo da Igreja Católica, no seu nº 2148), talvez a mais grave de todas.
                  Mas a alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado. A alternativa ao fundamentalismo é uma sociedade de diálogo entre religiões e entre crentes e não crentes. Um diálogo que comporta a liberdade do debate de ideias e da crítica, mas também o respeito pelo outro e pela sua sensibilidade. O diálogo serve para construir a paz e a fraternidade, o insulto não serve.

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