Há corações a arder no silêncio do país



Clara Nogueira, Velho Critério, 2015.02.14


Na Arruda dos Vinhos, a noite caiu e é fria. A missa das sete chegou ao fim e a Casa da República está cheia. Na cozinha, há uma alegria que ninguém pára.

À volta da mesa, de pé, canta-se um we will rock you do qual só sobra a melodia. "Abençoai, Senhor, a nossa refeição; que à volta desta mesa haja sempre união".

São mais de trinta universitários os que nestes dias tratam como sua a Casa da República. As férias entre semestres estão a acabar e a última semana foi deixada na Arruda. E parece ter sido eterna para estes rapazes e raparigas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova. Entre um dia e outro, passaram a chamar casa ao albergue da juventude e família aos que lhes abriram a porta e ofereceram a mesa durante um serão.

De cruz ao peito, queriam fazer arder corações. E esta é só uma luz pequenina. Ao todo, são quase dois mil os que em 2015, entre Janeiro e Fevereiro, partem, partiram ou partirão para todos os cantos do país sob o lema "Não te ardia o coração?".

Respondem se lhes chamarem missionários. Vêm em nome da Missão País e são jovens universitários católicos. Querem viver Cristo na faculdade, mostrar que Ele habita o quotidiano e levá-Lo a todos os cantos do país. Em silêncio, estão a incendiar Portugal.

 A mão de Deus



É assim há mais de dez anos. Em 2003, Alberto olhou para o Chile e quis fazer igual em Portugal. Durante uma semana, inspirados nas missões do Movimento Apostólico de Schoenstatt, 20 estudantes da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa fizeram render as férias depois dos exames e partiram para Coruche com o Pe. Diogo Barata. E com eles, levaram a Mãe Peregrina.

A missão foi preparada de rajada nos dias anteriores. Sem a organização que doze anos depois parece óbvia: sem lema, sem pasta de orações, sem t-shirt oficial, sem hino. Com muito improviso.

No ano seguinte, a Católica e o Técnico quiseram fazer o mesmo. E a seguir outros, e mais outros. Em 2015, são 1800 missionários em 35 missões de 32 faculdades. Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro. E mais estão para vir.

"Não há muita explicação", conta Tomás Líbano Monteiro. Tem 24 anos e é um dos dois chefes gerais da Missão País. A seu cargo directo estão mais de 40 universitários a trabalhar no projecto. "Todos os que passaram pela Missão País – mesmo os mais duvidosos – percebem que o que acontece ali não se explica, não há dúvida de que há uma mão de Deus, uma experiência humana profunda".

E hoje, já são mais os que missionam em Portugal do que no Chile. O desafio continua a ser "crescer organicamente, unificar". E claro, não deixar que a semana de missão acabe onde começou.

Abrir corações



Os dias começam cedo: oração da manhã, pequeno-almoço e partida. Divididos em comunidades com tarefas concretas, os missionários partem para onde foram chamados: lares, hospitais, unidades de cuidados continuados, paróquias, escolas. Constroem casas, moldam corações. Conversam, ouvem muito. Dançam, cantam, põem mãos à obra.

O objectivo é com o testemunho da fé, o serviço e a caridade, evangelizar. Durante meses, os chefes de missão, de oração, de serviço e de teatro prepararam o possível para fazer a semana acontecer. Depois, deixam o Espírito guiar.

E há muito a acontecer. Costuma dizer-se que são três missões numa só. A missão externa de contacto com a população. A missão interna da experiência vivida em grupo. A missão interior, a de cada um com Deus.

Nas ruas é gasta uma parte importante da jornada. De casa em casa, bate-se à porta. Dá-se as novidades, oferece-se ajuda. Deixa-se convites para a vigília de oração, para o teatro que, depois de uma semana de preparação, é levado aos palcos pelos missionários. E quando a porta do coração se abre, entra-se e conversa-se. Reza-se, em alguns casos.

E se por um lado se sabe que o crescimento da Missão País foi exponencial, que mais de 51 cidades foram marcadas Missão País, também é partilhado que ainda ninguém percebe bem a dimensão do projecto e das suas consequências nas vidas de tantos dos que por ele são tocadas. Contam-se histórias de conversões. Namoros, casamentos. Conventos e seminários. E projectos concretos: núcleos católicos nas faculdades, projectos de voluntariado. A vida a mudar.

 Reconhecer e não mais esquecer



Na Arruda, já a noite vai longa. Na sala de convívio do albergue da juventude, o hino canta na parede. "Quando O reconheceste nesses dias de missão, nunca mais te esqueceste. Não te ardia o coração?".

O fim da semana está perto mas a eternidade coube ali. A Inês estava sozinha e percebeu que não é a única a ir à missa na hora de almoço na igreja em frente à faculdade. A Margarida finalmente ganhou coragem de partir em missão e só se arrepende de não o ter feito mais cedo.

A dona Amélia não consegue parar de dar beijinhos às "suas meninas", como diz sempre. As crianças impacientes esperam ansiosamente o ano seguinte e com os olhos em água dizem adeus.

Desdobram-se as lágrimas e os abraços nas despedidas e nos reencontros. Não se esquecem as caras e há telefonemas de saudades anos depois.

O desafio chegou ao fim e tudo o resto começou. Os dias de faculdade estão de volta. A missão continua e pede ainda mais. Levar os compromissos para a vida, perceber que Deus não fica fechado numa semana, e não esquecê-los nas decisões quotidianas.

O desafio é grande mas o coração está quente. E não está só. A fé também vive de memória. E estas são para não esquecer. A chama continua.

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