Onde o crime compensa

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.02.25

Toda a gente diz que a União Europeia está a passar por grave crise. Toda a gente diz isso há quase sessenta anos. O que as pessoas esquecem é que a União Europeia é realmente uma impossibilidade política, económica, social, cultural e que no entanto permanece uma realidade histórica. Por isso a crise continua, tal como a União. Um dia a União pode desaparecer, e nessa altura a crise aumentará.
A questão portanto nunca é se a Comunidade está em crise, mas quais as características particulares da crise do momento. Neste caso, a dificuldade é grega e o problema tem origem num dos mais profundos dramas da humanidade, o conflito entre justiça e misericórdia. Estes são dois valores básicos e fundamentais, sem os quais a vida não é saudável, mas que têm de ser sempre equilibrados. Como diz o velho aforismo: "A justiça sem misericórdia é crueldade; a misericórdia sem justiça é profusão" (Glossa Ordinaria a Mt 5, 8).
Existe um local onde o crime costuma sempre compensar: a família. Todos nós, sobretudo em pequenos, cometemos inúmeras transgressões, desde o bolsar após o biberão até às rebeldias da adolescência, mas somos recebidos com benevolência e muitas vezes até carícias. Os pais, e sobretudo os avós, têm uma enorme capacidade de compreensão, aceitação e perdão das tropelias das crianças e jovens, tal como um casamento só sobrevive através da compaixão mútua. Claro que o consentimento tem limites e é muito perigoso ultrapassá-los. Se a família é o local do mundo com mais misericórdia, tudo muda de figura quando os delitos quebram o elo. As zangas entre parentes são as mais terríveis, profundas, duradouras e cruéis.
Uma comunidade, do clube ou empresa à integração internacional, não é uma família, mas inclui bastantes traços semelhantes. Aí também o destino comum e convivência habitual promovem a manutenção da unidade. Isso tende a fazer subir os limites da tolerância a atropelos. No entanto, a maior fragilidade dos laços sentimentais nas relações sociais reduz a lealdade e faz surgir mais comportamentos cínicos e estratégicos. Estes também acontecem nas famílias, mas aí costumam estar ligados a disfunções, enquanto nas relações civis podem ser naturais.
Estas tácticas acabam por se cristalizar no desenvolvimento de dois estereótipos extremos: o bom aluno e o rebelde oportunista. O primeiro aposta na justiça do grupo, enquanto o segundo serve-se da misericórdia comunitária. Nestes casos o dilema entre os dois valores corporiza-se num confronto entre posições antagónicas, tornando o equilíbrio mais difícil. Se a justiça prevalece, pode-se romper a unidade, por ejecção do perdulário; mas quando a misericórdia se torna dominante a indisciplina explode, arriscando igualmente a comunidade.
Existem muitos casos desta circunstância. Estilizando, certamente em demasia, é possível identificar esta dinâmica na história recente da experiência regionalista portuguesa. A Madeira tomou uma atitude que, não sendo obviamente transgressora, mantinha sempre uma certa rebeldia e displicência face às regras. Pelo seu lado os Açores, bastante mais pobres, sempre se esforçaram por seguir mais a disciplina, mostrando-se cumpridores. As atitudes podem mesmo ser personalizadas nos longos consulados dos seus líderes mais simbólicos, Alberto João Jardim (desde 1978) e João Bosco Mota Amaral (1976-1995). Embora as duas realidades socioeconómicas sejam muito diferentes, não faltam discussões sobre qual das vias é mais benéfica para a respectiva região. Foram os Açores ingénuos por terem acatado as regras, seguindo uma política de estabilidade? Ou está a Madeira na actual crise a pagar os muitos pecadilhos cometidos desde a autonomia?
A Grécia é o protótipo do insubordinado europeu. Desde que aderiu em 1981 esteve sempre no rol dos transgressores, muitas vezes isolada. Não se trata de um problema cultural, porque antes da adesão o país foi durante décadas um exemplo de estabilidade, equilíbrio e crescimento. Por isso entrou na Europa antes de muitos outros. Só que, uma vez dentro, os incentivos mudaram radicalmente. "A ocasião faz o ladrão", como diz o povo, e a Grécia viciou-se em infracções. À distância é difícil entender por que razão não se perdoa a dívida impagável, mas as sucessivas recaídas minam a benevolência, não apenas dos credores alemães mas dos parceiros devedores, que se esforçam por cumprir. À medida que a corda estica, a unidade vem ameaçada, seja pela p
unição do infractor seja pela indignação dos que cumprem e não toleram borlas.

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