A fama de Piketty

JOÃO CÉSAR DAS NEVES | DN 2015.04.29

A liberdade de expressão é um dos grandes valores da actualidade. Mas este enorme benefício, como todas as coisas preciosas, tem custos elevados. Poucos casos ilustram tão bem esta ambiguidade como a história recente da improvável fama de um economista francês.
Thomas Piketty, nascido em Clichy em 1971, é um excelente investigador, reconhecido há muito pelos seus estudos da evolução da distribuição de rendimentos. Tem mais de 20 anos de publicações marcantes, colaborando até com o maior autor da área, o britânico Sir Anthony B. Atkinson.
O seu trabalho tem duas particularidades interessantes. A primeira é que, em vez de se centrar no estudo da pobreza, como é habitual, Piketty analisa o extremo oposto, tratando a situação dos super-ricos. É mesmo co-fundador da World Top Incomes Database, um banco de dados que reúne os números disponíveis para quase todos os países do mundo (http://topincomes.g-mond.parisschoolofeconomics.eu).
O segundo aspecto constitui o método que lhe permite obter informação tão longa e vasta para problema tão complexo: o uso dos dados fiscais. A cobrança de impostos obriga há séculos todos os Estados a recolher valores detalhados sobre rendimento e património dos cidadãos. Com esses números pode traçar-se a trajectória a longo prazo da desigualdade em todo o mundo. A ideia é simples e eficaz, embora tenha também defeitos, que justificam a antiga relutância em usar estes meios. De facto a informação tributária sofre de enviesamentos óbvios, aliás patentes logo que os institutos de estatística conseguiram realizar inquéritos científicos, complementando e corrigindo as estimativas administrativas. Apesar disso, Piketty e colegas atreveram-se nesta abordagem, mostrando que as imperfeições são largamente compensadas pela vastidão de informação.
Esta literatura existe há muitos anos sem conseguir a atenção que merece. Até que o francês decidiu resumir os resultados num único volume. Deu--lhe um nome atrevido, com referência directa ao clássico de Karl Marx, e juntou-lhe uma boa dose de especulação e simplismo. Deve dizer-se que nem assim conseguiu o reconhecimento, quando Le Capital au XXIe Siècle chegou às livrarias em Agosto de 2013. Foi apenas na tradução americana, publicada em Março de 2014, que subitamente atingiu o estrelato. Com surpresa o cientista adquiriu estatuto de astro mediático, enquanto se vendiam mais de milhão e meio de cópias do volume de 900 páginas. Os resultados desta notoriedade foram simultaneamente excelentes e lamentáveis.
De repente a investigação séria e sólida sobre desigualdade interna dos países ricos tornou-se popular. Dentro da profissão económica isso gerou enorme interesse, que já começa a dar frutos. Finalmente este valioso trabalho de décadas goza da influência que merece. Infelizmente, porém, a única forma de conseguir tal divulgação foi abandonar o rigor que construiu os resultados.
O quadro traçado na longa e cuidadosa investigação da equipe a que o francês pertence não é unívoco nem simples. Como acontece sempre na realidade, há muitas variantes, efeitos complexos, resultados ambíguos. Relatar com seriedade e minúcia a evidência disponível foi aquilo que ele fez durante muitos anos, sem conseguir gerar slogans políticos ou panfletos de campanha. Estes foram os ingredientes mágicos que Piketty acrescentou ao seu best-seller, e que lhe trouxeram notoriedade. Assim a fama veio-lhe, não do valor científico, mas do apoio que parecia conceder a preconceitos radicais e propostas extremistas num tempo de crise e desconfiança.
Aquilo que sabem todos os que compraram e não leram o pesado volume é que o capitalismo gera inevitável desigualdade crescente. E isso está lá escrito, mas na parte especulativa e não científica da monografia, enquanto os dados fornecidos manifestam um panorama bastante mais emaranhado e ambíguo.
O autor, como analista respeitável que é, já o admitiu num recente texto, "About Capital in the Twenty-First Century", publicado na mais famosa revista de economia, American Economic Review: Papers & Proceedings 2015. Aí relativiza muitas das extrapolações e vulgarizações dos seus defensores, repondo a seriedade e equilíbrio numa questão que é demasiado importante para ser tratada com ligeireza.
A sociedade da informação é uma das maiores realizações da humanidade. Aí todos temos, não só acesso a enormes tesouros de conhecimento, mas possibilidade de manifestar a larga audiência os nossos pontos de vista. O custo desse valor precioso é o império da banalidade.

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