O Genocídio Arménio, um século depois

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES Observador 13/04/2015 - 13:42

Cabe à actual Turquia enquanto Estado sucessor do Império Otomano, quebrar o "muro de silêncio” e abrir caminho a uma reconciliação com este trágico passado.
Entre as maiores tragédias do século XX está o destino dos arménios na fase final do Império Otomano, durante a I Guerra Mundial. Um século depois, cabe reavaliar uma ocorrência que prenunciou o que de pior acabaria por ocorrer na II Guerra Mundial.
Um olhar retrospectivo sobre os acontecimentos leva a colocar duas questões fundamentais: (i) a deportação em massa da população arménia, iniciada em 1915, pode ser justificada como uma necessidade militar ligada às circunstâncias do Império Otomano na I Guerra Mundial? (ii) Houve, ou não, um plano deliberado de expulsar (e aniquilar) a generalidade da população arménia, o que na linguagem actual do Direito Internacional Humanitário se chama genocídio? Antes da resposta às questões anteriores é necessário um breve enquadramento histórico-político da questão arménia. No século XIX e inícios do século XX, esta era vista como um dos assuntos mais delicados da questão do Oriente, designação usada na diplomacia europeia para os problemas levantados pela desagregação do Império Otomano.
  1. Após períodos mais ou menos alargados de independência durante a longa Idade Média, os arménios (hai/haïk) foram submetidos ao poder do Império Otomano no século XVI. À semelhança de outros povos que durante largos períodos históricos não tiveram o seu próprio Estado, como os gregos e judeus, a religião foi determinante na preservação da identidade social-nacional num império islâmico. Tradicionalmente, seguem a Igreja Arménia gregoriana, uma das mais antigas formas de Cristianismo. No interior do Império Otomano constituíam um millet, ou seja, uma comunidade étnico-religiosa chefiada pelo seu patriarca, nomeado pelo sultão. Dispunham de uma certo grau de autonomia nos assuntos religiosos, civis e administrativos, bem como na regulação dos conflitos intra-comunitários. Tal como os gregos e judeus, eram dhimmi, qualificação dada pela sharia islâmica aos seguidores de outras religiões monoteístas. Estavam sujeitos às regras da sharia pelo que tinham de pagar um imposto de tolerância da vida e prática religiosa (jizya). A cidadania de segunda classe expressava-se de várias formas. Por exemplo, através da proibição do uso de armas, da não admissão de testemunho judicial contra muçulmanos, ou da impossibilidade de construir novas igrejas. No entanto, as relações na sociedade otomana eram complexas. Coexistiam situações onde certos membros de um millet eram privilegiados pelos sultões, por conveniência política e administrativa – controlo das comunidades religiosas através destes, comércio e atividade financeira, contactos diplomáticos com o exterior, etc. –, enquanto a maioria da população do millet vivia numa situação de opressão e discriminação. Para além disso, períodos de maior ou menor tolerância variavam ao sabor da personalidade dos sultões e das circunstâncias político-militares do Império.
  2. Com origem nos últimos anos do século XIX, uma série de acontecimentos acabou por levar ao desaparecimento quase total da população arménia. O contexto foi o de uma progressiva reversão da tradicional hierarquia muçulmano-dhimmi. A reversão iniciou-se com as Tanzimat no século XIX, as reformas modernizadoras do Império Otomano que levaram a uma gradual substituição da sharia por legislação à europeia. Entre outras modificações, estabeleceram a igualdade perante a lei dos dhimmi, algo mal recebido por muitos muçulmanos. Viram aí uma perda dos seus tradicionais privilégios concedidos pela sharia. Acresce a isso a hostilidade social gerada pelas actividades comerciais e industriais. Tornando-se estas mais importantes com os avanços do capitalismo, eram frequentemente exercidas por arménios, gregos e judeus. O factor demográfico teve ainda a sua influência. As autoridades otomanas instalaram substanciais populações muçulmanas que emigraram dos Balcãs e do Cáucaso, devido às perdas territoriais do Império, em zonas tradicionalmente habitadas por arménios, na Anatólia oriental e Cilícia. O objectivo terá sido a criação de novas realidades demográficas com população maioritariamente muçulmana, contrabalançando o peso dos cristãos arménios, mas também de gregos e judeus. O culminar da hostilidade ocorreu durante a I Guerra Mundial. Na noite de 24 para 25 Abril de 1915 iniciou-se a perseguição aos notáveis arménios em Constantinopla/Istambul, normalmente considerado o início do processo de erradicação da Anatólia. Pouco tempo antes, na ofensiva otomana de Dezembro de 1914 e Janeiro de 1915, efectuada no leste da Anatólia e no Cáucaso contra a Rússia, resultou numa pesada derrota em Sarikamis. Dos 90 mil homens do terceiro exército otomano terão sobrevivido cerca de 15 mil, tendo os restantes morrido em combate, por doença, ou devido a condições climatéricas extremas.
  3. A liderança militarista dos Jovens Turcos – Enver, que comandou directamente o início da ofensiva militar; Talât, o Ministro do Interior e chefe da gendarmerie, e o general Halil Kut –, culpabilizaram os arménios pela derrota militar. Acusam-nos de deserções para o exército russo e actos de guerrilha por detrás das linhas otomanas. Em resposta, o governo do grão-vizir Sait Halim, sob proposta de Talât, aprovou a deportação dos arménios. Na Lei Provisória de Deportação de 27/05/1915 lia-se o seguinte: “Artigo I. Em tempo de guerra, os comandantes do exército, de corpos do exército e de divisão, ou seus substitutos, tal como os comandantes de postos militares independentes que se vejam confrontados da parte da população com um ataque ou resistência armada, ou encontrem sob qualquer forma uma oposição às ordens do governo ou aos actos e medidas relativos à defesa do país e à salvaguarda da ordem pública, têm autorização de as reprimir imediatamente e vigorosamente através da força armada e de suprimir radicalmente o ataque e a resistência. Artigo II. Os comandantes do exército, de corpos do exército e de divisão podem, se as necessidades militares o exigirem, deslocar e instalar noutras localidades, separadamente ou conjuntamente, a população das cidades e vilas que eles suspeitem culpadas de traição ou de espionagem” (Yves Ternon, Les Arméniens. Histoire d’un génocide, 2ª ed., Éditions du Seuil, 1996, p. 249). Este documento legal suscita duas observações. A primeira refere-se ao seu teor. Não há uma referência explícita às populações arménias o que lhe dá uma aparência formal de medida que não visava especificamente esse grupo étnico-religioso (nacional), mas era justificada apenas por fins militares. A segunda é que, de facto, foi apenas uma cobertura a posteriori para uma realidade já em curso. Múltiplos testemunhos locais e relatos diplomáticos comprovam que a deportação dos arménios estava já a ser posta em prática antes da promulgação da Lei Provisória de Deportação.
  4. Feito este enquadramento histórico-político dos acontecimentos, é possível agora responder às interrogações iniciais. Quanto à primeira questão, constata-se uma desproporção entre a medida adoptada – a deportação generalizada das populações arménias –, e o problema militar no terreno. Mesmo admitindo como fundamentadas as preocupações militares, as deportações apenas poderiam ter uma justificação aceitável se fossem limitadas às zonas de guerra, o que não foi o caso. Estas verificaram-se na generalidade do território otomano, incluindo as zonas fora de guerra. A perseguição e massacre dos notáveis arménios de Constantinopla/Istambul, em Abril de 1915, é bem exemplificativa. Sobre a segunda questão, a da real intenção dessa deportação, a resposta aponta para uma tentativa de erradicação da população arménia, feita a coberto das circunstâncias de guerra. Os acontecimentos envolveram Enver, Talât e outros, não só enquanto membros do governo otomano, mas também enquanto dirigentes do Comité para a União e o Progresso (CUP) – o partido dos "Jovens Turcos". Enver e Talât dispunham das estruturas organizativas próprias do partido e de elementos de confiança no terreno. Essas "estruturas sombra" eram formadas por oficiais voluntários e outros membros do exército, uma espécie de tropas de choque do CUP. Desde a revolução de 1908 que levou os "Jovens Turcos" ao poder, faziam o “trabalho sujo” no terreno, livrando-se de adversários políticos e procurando suprimir movimentos separatistas. Conhecida informalmente como a Teskilât-i Mahsusa (Organização Especial), foi formalizada em 1914 e colocada sob o comando directo de Enver. Embora os registos da Teskilât-i Mahsusa tenham sido destruídos e os arquivos do CUP se tenham perdido, existe um conjunto importante de documentos e testemunhos. Nestes incluem-se os arquivos diplomáticos e outros documentos da Alemanha e Áustria-Hungria, aliados do Império Otomano durante a I Guerra Mundial. Os factos apontam para que um círculo restrito dos Jovens Turcos, "sob a direcção de Talât, pretendeu ‘resolver’ a questão do Oriente pelo extermínio dos arménios, usando a deportação como capa para essa política”. Na sua execução no terreno “um determinado número de chefes provinciais do partido deu assistência a este extermínio, sendo organizado através do Teskilât-i Mahsusa, sob a direcção do seu director político e membro comité do central do CUP, Bahaeddin Sakir” (Erik J. Zürcher, Turkey. A Modern History, I. B. Tauris, 2.ª ed. 1997, p. 121).
  5. Face à perda e/ou destruição dos documentos do CUP e da Organização Especial, naturalmente que persistem dúvidas sobre os contornos exactos dos acontecimentos. Entre outros aspectos, provavelmente nem será possível determinar, acima de qualquer controvérsia, o número de vítimas da deportação e massacres. É um facto controverso o número de arménios que habitava o Império Otomano antes da deportação, o que condiciona as estimativas das vítimas efectuadas. Também não é possível destrinçar com rigor as mortes que se devem a maus tratos, assassínios, execuções e massacres, daquelas que resultaram de escassez de alimentos e falta de assistência médica. Daí a oscilação dos cálculos – em qualquer caso estimativas –, entre algumas centenas de milhares até um valor superior a 1 milhão ou 1,5 milhões de vítimas. Tais dúvidas, legítimas numa discussão histórica e política séria, não são, no entanto, suficientes para minimizar a gravidade humanitária da deportação, nem para reduzir as perseguições e massacres a uma “normal” ocorrência de guerra. Não alteram a substância da questão. O artigo 2º da Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio de 1948 das Nações Unidas qualifica o genocídio como “os actos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal”. Em concreto, esses actos são (i) a morte de membros do grupo; (ii) o atentado grave contra a integridade física ou mental de membros do grupo; (iii) a submissão intencional de membros do grupo a condições de existência que deverão levar à sua destruição física total ou parcial”. As incertezas existentes não dão argumentos sólidos, nem históricos, nem políticos, para refutar que a deportação dos arménios se assemelhou às situações contempladas na Convenção sobre o Genocídio. Um século depois, cabe à actual Turquia enquanto Estado sucessor do Império Otomano, quebrar o "muro de silêncio” e abrir caminho a uma reconciliação com este trágico passado.
Investigador. Autor do Livro Turquia: Metamorfoses de Identidade (Imprensa de Ciências Sociais do ICS-Universidade Nova de Lisboa, 2004)

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