O Rossio não cabe na rua da Betesga

José Manuel Fernandes | Observador 21/4/2015

Não havia forma de o PS pagar as suas promessas se não operasse uma espécie de "milagre das rosas": prometer um ciclo de crescimento económico em que, realisticamente, não é possível acreditar.
Vou ser sincero: esperava mais e melhor do trabalho da equipa de Mário Centeno. Não pelo que conhecia das posições de muitos dos seus membros, mas pelo que fui lendo de tudo o que escreveu o coordenador da equipa que elaborou este relatório intitulado “Uma década para Portugal”.
Era conhecida a dificuldade de partida: o ritmo de crescimento expectável para a economia portuguesa dificilmente permitiria fazer grandes promessas eleitorais. Ainda a semana passada vimos como a proposta de Programa de Estabilidade do Governo, mesmo incluindo previsões de crescimento económico mais optimistas do que as da Comissão Europeia, não dava grande margem para flores eleitoralistas, pelo contrário, apenas permitindo um alívio gradual das medidas de austeridade ao longo de quatro anos. Mesmo assim ouvimos, vindas do PS, críticas ao “optimismo” das previsões de crescimento.
E como é que o PS resolveu esse problema? Com previsões de crescimento ainda mais optimistas do que as do Governo, logo muito mais optimistas do que as da Comissão Europeia. É simples: como o Rossio não cabia na rua da Betesga, o PS tratou de alargar a rua da Betesga. Assim é fácil, sobretudo nas folhas de excel – mas é ilusório.
A principal razão porque é ilusório é porque a generalidade das medidas apresentadas por Mário Centeno não são favoráveis ao crescimento. Pelo contrário. A ideia central, aquela em que continuam a acreditar muitos economistas da velha escola, é que estimulando o consumo se vai conseguir mais crescimento económico. É nisso que aposta quase em exclusivo este programa, ao aumentar subsídios, fazer desaparecer mais depressa os cortes salariais e a sobretaxa do IRS, para além de outras medidas várias. Ao mesmo tempo interrompe-se a descida na taxa de IRC, uma descida com que o PS se tinha comprometido, uma descida que daria uma vantagem competitiva às empresas que escolhessem investir em Portugal.
Eu sei que é esse o credo do neokeynesianismo, mas a verdade é que há muito que a realidade o desmente: a propensão para o consumo de sociedades tão envelhecidas como são as nossas, e a portuguesa em particular, não é a mesma de sociedades mais jovens, por isso já não se pode esperar o mesmo tipo de reacção de antigamente. Até porque os consumidores aprenderam a ser mais prudentes e estão muito endividados.
Mas há ainda um problema adicional e fulcral: estimular o consumo privado num país como Portugal tem como consequência imediata estimular as importações, pois somos uma pequena economia aberta. O equilíbrio das contas externas, um dos maiores sucessos do nosso processo de ajustamento, poderá assim ser facilmente revertido. Nessa altura, a nossa dívida esquecida – a dívida externa, que é bem maior do que a dívida pública – voltaria a agravar-se.
Portugal teve, nos anos que antecederam a bancarrota, um bom exemplo de como políticas em muitos pontos semelhantes às que agora são propostas não funcionam, mas o PS parece querer regressar a muitas delas. Quase que só falta conhecer a sua componente em cimento e obras públicas. Tudo isto para prever um crescimento acumulado, no final da legislatura, de 11%, o que compara com os 1% registados durante o primeiro mandato de José Sócrates, com toda a sua espiral de endividamento. Acham mesmo que é credível?
Mas, para mim, a maior desilusão deste documento é o que nele se propõe para o mercado de trabalho. Conhecia as posições de Mário Centeno, li o seu pequeno livro “O Trabalho — Uma Visão de Mercado”, concordo em absoluto com a sua crítica à actual dualidade existente no mercado de trabalho, com contratos a termo onde a precariedade é absoluta e contratos sem termo que, apesar de tudo o que se fez nos últimos anos, continuam a ser quase intocáveis. Nesse livro Mário Centeno defendia que, para limitar os contratos a prazo, era necessário acabar com a ilusão proteccionista e diminuir os custos do despedimento.
Não é nada disso que encontro agora neste relatório e o vi mostrar no powerpoint. Limitar drasticamente as possibilidades de contratos a prazo mantendo, ao mesmo tempo, todos os direitos dos contratos sem prazo, acrescentando apenas um ilusório “regime conciliatório” – uma ideia que só pode ter saído da cabeça de quem nunca teve responsabilidades numa empresa privada –, só pode ter uma consequência: tornar mais difíceis as contratações, complicar a descida dos níveis de desemprego.
Todo este documento não é, de uma forma geral, amigo das empresas – e é nas empresas que se inova, que se cria emprego e que se cria riqueza. Quando muito é favorável às empresas que estão bem instaladas no mercado interno, as que lidam com bens não transaccionáveis e que ainda poderão lucrar alguma coisa com os “estímulos” ao consumo. Mas não é nessas que está o nosso futuro, nem um crescimento sustentado.
É certo que, noutras áreas do documento, há algumas ideias interessantes e que até se aproximam de outras que têm sido avançadas pela actual maioria. Talvez haja, por exemplo, espaço para alguma aproximação entre os principais partidos portugueses numa reforma da segurança social, mas para isso é necessário que exista uma vontade política que, do lado do PS, não parece existir. Em nenhum momento da apresentação de ontem António Costa referiu sequer a importância de acordos alargados para levar por diante as suas propostas, algo que seria, no mínimo, avisado.
Em síntese. O que este relatório sobre “Uma década para Portugal” nos garante é mais despesa pública: isso está lá, tim-tim por tim-tim; e o que ele nos promete é que isso não será problema porque a nossa economia voltará a crescer vigorosamente, qual “tigre ibérico”.
Mesmo assim talvez a sua única novidade seja a de que, afinal, não se conseguiu alargar assim tanto a rua da Betesga, mesmo que só no papel, pelo que algumas das promessas dos últimos meses – como a devolução imediata dos cortes salariais na administração pública e o fim da abolição da sobretaxa do IRS já em 2016 – acabaram por cair, sendo escalonados por dois anos. Foi um pequeno choque com a realidade.
Faltou pois o mais importante: a humildade de aceitar cenários de crescimento mais realistas e mais de acordo com as previsões de todas as instituições internacionais. Mas não: a esperança do PS é que, esfregando a lâmpada de Aladino do consumo, em Portugal se repita o milagre da multiplicação dos pães e nos transformemos num milagre económico capaz de espantar a Europa e o Mundo.
Se isso não suceder, que promessas deixará Costa por cumprir? Na verdade, com mais ou menos contribuição de “sábios”, já vimos este filme várias vezes.

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