O que se diz que se disse sobre o que se pode fazer se…

Helena Matos | Observador | 2015.05.24

A atribuição de uma casa com renda social não é vista como um apoio temporário pelos usufrutuários mas sim como uma benesse vitalícia: as taxas de mobilidade no parque de habitação social rondam os 2%
“Ponto 6. Criação de bolsas de habitação acessível mobilizando 10% do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social para investir em imóveis.” Ao ler o ponto 6 da Proposta de Programa apresentada pelo PS e ao constatar a desatenção a que ele tem sido votado lembrei-me da orquestra do Titanic. Não propriamente do Titanic da realidade mas sim do que teria acontecido caso ele fosse um navio português: nesse caso a questão não seria o desastre vivido pelo barco nem o facto de a orquestra ter continuado a tocar durante o naufrágio mas sim o que cada um dos passageiros teria declarado que gostava de ouvir naquele dramático momento.
A nós, portugueses, a realidade interessa-nos pouco. O que nos apaixona e mobiliza é que se diz sobre o que foi dito que se disse. Por exemplo, e voltando ao programa do PS, que interesse tem esta proposta concreta de usar 10% do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social que por sinal já tem 90% da sua carteira de títulos aplicada em dívida nacional (lembrem-se dessa percentagem – 90% – sempre que se falar de renegociar e bater o pé aos credores!) face à urgente discussão sobre as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre as declarações de António Costa sobre a possibilidade de Cavaco Silva não dar posse a um governo minoritário que possa sair das próximas legislativas? O que é este detalhe da realidade de usar uma percentagem do dinheiro da Segurança Social para custear habitação social (Para quem? Para ser construída por que empresas? Para ser gerida por quem?) face a algo tão urgente quando aquilo que Marcelo diz sobre o que Costa disse pensar sobre o que Cavaco pode fazer perante uma hipótese de resultado eleitoral?
Nós sofremos de uma óbvia distorsão no comentário. Estamos atacados por uma futebolização dos comentários políticos: boa parte do tempo e das energias dos comentadores e protagonistas do mundo do futebol são ocupados a discutir não os jogos em si mesmos mas sim o que disse o treinador, o presidente do clube, o jornalista que por sinal é do outro clube… Esta gente cada vez mais se assemelha aos hooligans que no seu destempero alienado acabavam a nem sequer assistir aos jogos pois estes eram apenas um pretexto para as suas exibições. Na política estamos na mesma. Comentamos o que se diz sobre o que foi dito e não o que o que acontece e muito menos o que propõe.
Nas propostas do PS há aspectos interessantes – por exemplo a criação de uma conta-corrente entre o Estado e as empresas. Outras propostas não passam daquelas vacuidades obrigatórias que surgem nos programas de todos os partidos como é o caso do ponto 9: “Afirmação do interior do país como centralização do mundo ibérico.” (Pelas almas vamos deixar de falar de mundo ibérico. A Ibéria é um excelente negócio para Espanha que nessa designação não só dilui o impacto negativo da temida desagregação do seu estado como nos inclui na molhada daí resultante. Portugal é um estado e não está de modo algum ao nível aspiracional da Catalunha ou do País Basco. Não custa nada escrever luso-espanhol. Se algum dia for luso-espanhol-catalão-basco, será, mas antecipar essa situação não é do nosso interesse.)
E outras propostas, como é o caso da já referida nº 6, são um desastre anunciado. Aliás as propostas para a Segurança Social são aquelas em que a marca do estatismo a que o socialismo está confinado são mais evidentes: pretender financiar a Segurança Social através de uma nova taxa (como se defende no item 16) aplicada às empresas com maior rotatividade de trabalhadores pode soar bem aos ouvidos mas na prática traduz-se por penalizar as empresas que empregam mais jovens e que em muitos casos recorrem a mais tecnologia.  Esgotada como está a capacidade contributiva das empresas e dos trabalhadores anunciar que se vai diversificar as fontes de financiamento da segurança social implica necessariamente cobrar mais impostos. E não, não vão ser as grandes heranças a resolver o problema. As grandes heranças só são grandes para quem as recebe. Para as contas da Segurança Social não valem quase nada. O que pode fazer a diferença são os impostos e estes sobretudo se forem lançados sobre empresas que incorporem mais tecnologia vão acentuar ainda mais a injustiça geracional em que assenta a Segurança Social.
Os actuais contribuintes não só vão trabalhar mais anos e usufruir de reformas que na, melhor das hipóteses, representarão 65% sobre o valor dos seus ordenados (esses contribuintes pagam actualmente com as suas contribuições reformas que chegam a equivaler a 100% dos ordenados auferidos enquanto trabalhadores pelos actuais reformados) como vão ainda confrontar-se com as consequências da saída de mais dinheiro da economia via impostos para financiar a Segurança Social. Esta é uma situação que mais cedo ou mais tarde nos vai explodir nas mãos e que a proposta do PS acentuará mas que por agora não merece nem um centésimo do interesse suscitado pelo que Marcelo disse sobre o que Costa disse que Cavaco pode fazer se…
Mas mesmo que a Segurança Social nadasse em dinheiro cabe perguntar: está na sua vocação apoiar habitação social? Essa pergunta tem tanta mais razão de ser quanto tendo sido António Costa presidente da CML, que é senhoria de 23 mil fogos sociais, não ignora certamente que os estudos sobre habitação social revelam que a atribuição de uma casa com renda social não é vista como um apoio temporário pelos usufrutuários mas sim como uma benesse vitalícia: as taxas de mobilidade no parque de habitação social rondam os 2%. Ou seja aqueles que vierem a ser apoiados caso a proposta do PS vingue continuarão a sê-lo ou achar que têm direito a tal por toda a sua vida.
Mas existe ainda uma outra questão que se prende com a própria concepção de habitação social: quando em 2014 se discutiu como contabilizar a renda social nos apoios sociais recebidos pelos agregados familiares e o aumento da renda social mínima de 4,95 euros para 8,38 euros, constatou-se que inúmeros beneficiários das rendas sociais dependiam de outros apoios sociais. A pergunta tornou-se então inevitável: excluídos os casos de doença, violência doméstica e circunstâncias excepcionais de vida, como é que estas pessoas continuam tão dependentes dos apoios sociais após beneficiarem anos e anos de um apoio tão importante quanto o é uma casa a baixo custo? Aliás em que medida é que terem beneficiado de uma casa social não foi uma espécie de presente envenenado para muitas famílias que tiveram naquela casa o seu ghetto socialmente patrocinado em nome das melhores intenções?
Por fim há uma questão política levantada por esta proposta do PS para a habitação social: já viram os organogramas das empresas municipais de habitação? Estas são conglomerados de gabinetes para os bairros, assistentes sociais, equipas dinamizadoras, mediadores, pólos, grupos técnicos que há que mobilizar para mudar lâmpadas e arranjar persianas… Tudo isto além de ser ineficaz e nos sair caríssimo contribui para o crescimento dos partidos não apenas à custa do Estado mas no Estado.
Se nos libertarmos do diz que disse talvez ainda vamos tempo de discutir a realidade.
PS. O sim ao casamento entre pessoas do mesmos sexo ganhou na Irlanda. Fala-se de votação histórica e, que eu tenha dado por isso, ninguém questiona a legitimidade do resultado. Curiosamente há um ano, em Portugal, a possibilidade de se fazer um referendo sobre a adopção por casais do mesmo sexo colocou o país bem pensante à beira de um ataque de nervos. Referendo tornou-se então sinónimo de populismo. Isto para ja não falar do que se disse e escreveu quando em 2010 entrou uma petição na Assembleia da República com 90 mil assinaturas pedindo a realização de um referendo ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Até ver, pelo menos nos jornais os referendos serão todos legítimos mas, consoante os resultados, uns são menos legítimos que os outros.

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