Socialismo e democracia

Paulo Tunhas
Observador 14/5/2015

A esquerda, e particularmente o PS, continua a achar-se proprietária do regime, e não se priva de o fazer saber. A coisa é tão constante que uma pessoa deixa até de se dar conta dela.
Duas ou três conversas depois das eleições no Reino Unido puseram-me a pensar numa coisa. Se calhar, “conversas” não é a palavra apropriada. Há muito tempo que procuro evitar conversas sobre política com a maior parte das pessoas, utilizando uma variante de uma regra impecável no trato com taxistas (nunca discordar deles) que consiste em mudar de assunto o mais depressa possível. (A propósito: há quanto tempo não encontro um taxista nostálgico de Salazar… O tempo passa…)
Bom, de qualquer maneira fiquei a saber que a vitória dos Conservadores foi um desastre absoluto. Claro que o crescimento da economia e a diminuição do desemprego não têm importância nenhuma, no caso improvável de se ter prestado atenção a isso. Mas porquê um desastre tão absoluto e tão fundamente sentido? Uma hipótese. Na cabeça de muita gente, a direita – em qualquer altura, em qualquer parte do mundo – não pode, por definição, ser inteiramente democrática. Daí o horror a priori a qualquer uma das suas encarnações, até às que florescem na Inglaterra e arredores.
Este sentimento manifesta-se em Portugal por uma recorrente dúvida quanto à legitimidade da direita. E tal dúvida não é apenas palpável no PC e na extrema-esquerda. Ela encontra-se implícita em muito do que se diz pelas bandas do PS e do que é dito por gente próxima do PS. A esquerda, e particularmente o PS, como muitas vezes é notado, continua a achar-se proprietária do regime, e não se priva de o fazer saber. A coisa é tão constante que uma pessoa deixa até de se dar conta dela. Mas basta comparar o que é permitido à esquerda dizer (apelar, por exemplo, a um “novo 25 de Abril”) e o que aconteceria se, à direita, surgissem propósitos equivalentes. A esquerda é tão proprietária da democracia que se permite ocasionalmente insinuar que a pode subverter porque os seus critérios são mais justos e profundos do que os da direita. Há, sempre, pronto a reaparecer, aquele bocadinho de marxismo escolar que distingue a “democracia formal” da“democracia real”.
Por acaso, estive a ler por estes dias um livro de um historiador francês, Michel Winock, que não faz “grande história”, mas que faz história informativa e útil. O livro chama-se La gauche en France e trata da história da esquerda em França, de 1789 a 2006. O que me surpreendeu foi a excepcional longevidade da resistência à “democracia formal”. E não me refiro ao Partido Comunista francês e adjacências esquerdistas. É verdade que as aventuras do PC francês, no seu mais que abjecto servilismo por relação à URSS de Estaline, o “condutor da locomotiva da história”, cujo desprezo pelos franceses atingia proporções cósmicas, conseguem surpreender sempre. Refiro-me antes ao Partido Socialista, ao longo das suas várias metamorfoses através do século XX.
Jaurés, para começar pelo princípio do século. O objectivo da “evolução revolucionária” era bem o estabelecimento da “ditadura do proletariado”, que obviamente subverteria a ordem burguesa. Deste ponto de vista, nenhum desacordo entre Jaurés e o mais radical Jules Guesde: a ditadura do proletariado deve preceder a sociedade sem classes e o “colectivismo”. O marxismo foi sempre, de forma mais ou menos profunda e consistente, um elemento estrutural do pensamento dos socialistas franceses, que nunca aceitaram uma revisão social-democrata, ao contrário do que aconteceu – tardiamente, é verdade – com os socialistas alemães (Congresso de Bad-Godesberg, 1959). E, com o marxismo, permaneceu sempre viva a tentação – mais do que a tentação, a ambição doutrinal – da substituição da “democracia formal” pela “democracia real”.
Em Léon Blum, a mesma coisa. Blum distinguia a “conquista do poder” do “exercício do poder”. A “conquista do poder” era o objectivo último, real. O “exercício do poder” – governar em regime capitalista – correspondia àquilo que as situações concretas permitiam, aquém dessa conquista. A “conquista” representava um acto revolucionário total, a tomada total do poder político, com vista à inteira subversão do sistema capitalista. O “exercíco” – provisório, por definição – mantinha-se ainda no campo da aceitação do jogo parlamentar. Note-se que a própria admissão do “exercício” do poder foi criticada por muitos socialistas à esquerda de Blum, tal era o horror que inspirava o parlamentarismo.
Guy Mollet, que presidiu durante mais tempo do que qualquer outro aos destinos do socialismo francês, era também um marxista, capaz de discutir com subtileza os detalhes da doutrina e ambicionando reconciliar a família marxista, desavinda desde o Congresso de Tours (1920), onde, por apelo de Lenine, se produzira a cisão comunista. Tal como Jaurés e Blum, cultivou os princípios de uma revolução proletária, da luta de classes e da ditadura do proletariado. A expedição do Suez e a guerra da Argélia, quando era primeiro-ministro, foram episódios do “exercício do poder” que em nada punham em causa a justa ambição da sua “conquista”. E nem sequer Miterrand, que chegara ao socialismo por razões puramente estratégicas, depois de uma carreira política tortuosa, se privou de mencionar as virtudes do marxismo e de proclamar o seu desejo de uma “estratégia global de ruptura”, “violenta ou pacífica”, com a sociedade capitalista.
É claro que a história das esquerdas não-comunistas varia de lugar para lugar, e a história do socialismo francês não é certamente exemplar, nomeadamente na sua aversão natural pela social-democracia. Mas também não é assim tão radicalmente diferente da dos outros países europeus. Em tempos e lugares terríveis, esquerda e direita dedicaram-se ao horror com paixão e apetite criminoso. Em tempos normais,  ou simplesmente menos terríveis, a sua folha de serviços democráticos esteve muitas vezes longe de ser impecável. Mas, do ponto de vista da “democracia formal”, a esquerda não tem muitas razões para se orgulhar face à direita.
De facto, a própria ideia de socialismo contém em si a sugestão de um regime melhor do que o do capitalismo e da mera democracia parlamentar. E por muito que, na prática, essa sugestão em nada interfira no comportamento dos socialistas, por muito que o “exercício do poder” se baste a si mesmo sem que a “conquista do poder” venha visitar os espíritos, na teoria a coisa mantém-se. E serve para demonizar, quando dá jeito, a direita, e levantar a suspeita da sua incompatibilidade com a verdadeira democracia. Afinal de contas, a quem pertencem os mais elevados padrões de justiça? A resposta encontra-se já dada na teoria. E Cameron antecipadamente condenado.

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