A matéria da Europa

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.06.17

A União Europeia nasceu da solidariedade e está em risco por falta de solidariedade. Esta parte é evidente; as dificuldades vêm das estranhas propriedades desta diáfana substância que une e anima a Europa.
A solidariedade é muito especial: só funciona em ambos os sentidos e quando todos participam. Assim é fácil pedir solidariedade, exigir solidariedade; difícil mesmo é ser solidário. Isso leva a mal-entendidos, como reclamar solidariedade esquecendo o próprio contributo ou pretender promovê-la ralhando com os parceiros não solidários.
Pior, a Europa enfrenta uma das doenças mais terríveis da solidariedade: o proverbial problema da "ovelha ranhosa". O futuro da unidade depende de todos os membros confiarem naquele que mais violou a confiança. Este facto simples, evidente, gritante até, anda muito omisso das conversas sobre o longo drama que devasta o sacrificado povo grego e ameaça a unidade europeia.
A União exige que Estados membros e autoridades comunitárias emprestem mais uns largos milhões ao governo grego, para lá de todos aqueles que ele não pagou. Isto apesar de tudo o que os sucessivos governos desse país fizeram para minar a confiança dos parceiros, e de o actual levar o desafio e atrevimento a níveis inauditos. A verdade é que ninguém mostrou menos solidariedade comunitária do que a Grécia, a mesma que agora reclama solidariedade dos parceiros.
Por outro lado, esta compreensível desconfiança conduziu a Grécia a uma situação incrível, o único país desenvolvido a sofrer uma grande depressão desde os anos 1930. Com economia devastada e desemprego explosivo, o sofrimento atingiu níveis inaceitáveis, o que torna compreensíveis a insolência e a rebeldia do governo grego. Assim o resultado é o impasse.
A Grécia é horrivelmente mal gerida há décadas, com uma recorrente subversão do interesse público, sempre capturado por inúmeras formas de corrupção, aproveitamento e oportunismo de grupos instalados. As disfunções sociais do país são evidentes para quem quiser abandonar os mitos e olhar para a realidade.
Esta constatação não nos deve levar a uma forma de racismo, atribuindo o problema ao carácter grego. Não é preciso ir à Antiguidade para ver realizações espantosas desse povo. Quando em 1981 o país aderiu à Comunidade, o mais pobre que até então o conseguira, fê-lo de pleno direito, devido às excelentes prestações económica e financeira das décadas anteriores. Tal como Portugal anos depois, a adesão pretendia assegurar a democracia num país com conturbada experiência política mas impressionantes realizações produtivas.
O mal não está nos gregos, mas nos hábitos políticos que a integração trouxe consigo. Desde cedo que os ministros helénicos se habituaram a aproveitar todos os ganhos que a Europa concedia, evitando as exigências que a integração trazia consigo. O mal da Grécia é a sua recorrente falta de solidariedade europeia.
É inegável que o país se tornou o protótipo do oportunista endividado e abusador, mas também que a Europa tolerou os atropelos e alimentou os abusos. Esta é a razão por que os credores em geral, e a Alemanha em particular, apesar do horror dos últimos anos, não conseguem confiar na Grécia, por ela não mostrar a mais elementar das solidariedades: cumprir regras. E a história não começou ontem; foram quase 35 anos de recorrentes transgressões e esbanjamentos.
A crise desde 2008 atingiu o limite e, mesmo aí, confirmaram-se as desconfianças. Enquanto o país se arruinava, muitos grupos conseguiram defender privilégios pagos com dinheiro alheio. É verdade que também noutros Estados as reformas ficaram aquém do planeado; mas ali, ao contrário de parceiros como Portugal, não se cumpriram os mínimos que permitissem às autoridades europeias mostrar benevolência, apesar de o povo sofrer horrores.
A recente arrogância do Syriza, por muito compreensível que seja, aumentou a dificuldade. Negar o problema e ralhar com os credores não é forma razoável de ganhar a sua indispensável confiança. Afinal esta última colheita de dirigentes, apesar de livre dos vícios das anteriores e com orientação política radicalmente diferente, mantém a atitude de fundo: o governo grego está menos preocupado com o interesse nacional do que com a satisfação de certos grupos ou princípios ideológicos.
Décadas de erros mútuos trouxeram a situação ao ponto limite. Mas a Europa e a Grécia têm de se lembrar de que a matéria de que é feita a Europa é a solidariedade. Se a conseguirem reencontrar, a União não só ultrapassa a crise, como fica mais forte.

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