O Papa e a economia

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 20150623

Imagine um mundo a duas dimensões, onde se vive como linhas numa folha de papel, sem profundidade. Para esses, um cubo seria só um quadrado e não se distinguem esferas, cilindros e cones, todos reduzidos à condição de círculos. Assim parecem muitos comentários às declarações papais. Habituados a fazer análises políticas e económicas, muitos são incapazes de entender os aspectos transcendentes dos textos religiosos, simplesmente por perda da dimensão espiritual. Não é maldade, é limitação.
Na semana passada, o Papa Francisco apresentou um texto espantoso, a encíclica "Laudato si" sobre questões ecológicas. Nele, partindo das generalizadas preocupações sobre a condição do planeta, o Pontífice faz uma elaboração única e original acerca de temas tão discutidos. Considerando os aspectos mais profundos e radicais da questão, atinge uma abrangência e uma compreensão que escapam à generalidade dos especialistas. Basta notar o genial conceito de "ecologia integral" (11), alargando à esfera social a formulação biológica. O papa João Paulo II já tinha estendido a noção de equilíbrio natural, com a expressão "ecologia humana" (Centesimus Annus 38). Francisco expande o exercício, introduzindo elementos riquíssimos como poluição mental (47), ecologia económica (141), social (142), cultural (143) ou ecologia do quotidiano (147). Assim aborda questões que vão das redes sociais (47) ao aborto (117, 120).
Estes e muitos outros aspectos fazem desta encíclica um dos textos mais brilhantes e influentes dos últimos tempos. Mas muitos limitam-se a sublinhar que, como em intervenções anteriores, o Papa critica duramente economia e mercado. Não usa frases--choque, como a célebre "Esta economia mata!" (Evangelii Gaudium 53), mas diz que "A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real" (109) e "Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos" (190). Será que o Papa não gosta da economia e dos economistas?
Formular a pergunta chega para ver a sua tolice. Não se trata de gostos, nem isso é relevante. Essas frases não formulam uma resposta técnica ou posição ideológica. São o grito de um pai, preocupado com o sofrimento dos mais fracos. Isso foi dito explicitamente na Exortação de 2013: "O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los" (EG 58). Considerar a encíclica como tomada de posição entre escolas de política e sistemas sociais ou como crítica geral à vida económica é disparate. O próprio faz questão de explicar: "Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum" (188).
Francisco tem uma linguagem muito mais solta, espontânea e contundente do que os seus antecessores. Essa é grande parte do seu encanto e eficácia. Longe vão as elegantes frases diplomáticas de S. João Paulo II ou as rigorosas formulações certeiras de Bento XVI. Mas se admiramos a vivacidade e a naturalidade do Papa argentino, não podemos depois ficar incomodados ou, pior, usar como arma de arremesso ideológico as suas expressões politicamente incorrectas.
Um exemplo de economia do ambiente esclarece o ponto. A encíclica refere-se de forma negativa ao mercado de títulos de carbono ou de "créditos de emissão", porque "pode levar a uma nova forma de especulação" e "não implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias" (171). Isso não impede que esses mecanismos mostrem propriedades interessantes, embora tenham falhado na Europa. A ciência económica faz bem em estudá-los e recomendá-los, tomando o cepticismo papal como aviso sensato de problemas que esses métodos evidentemente possuem.
Temos um Papa extraordinário, santo, profético, brilhante, de quem sempre temos coisas a aprender. Ele nunca é o círculo a que o querem reduzir. Entre a esfera liberal, que rebola por todo o lado, e o unívoco cilindro socialista, Francisco surge como o cone que sempre aponta o Céu. Podemos tomar as suas expressões coloridas como ofensivas ou usá-las contra ódios de estimação, mas isso fica à nossa responsabilidade, e o Papa não gosta.

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