O referendo e a fraude democrática

Alexandre Homem Cristo
Observador 29/6/2015

O propósito do referendo é legitimar o Syriza. Seja pela ruptura com o Euro, seja pela cedência a um acordo, do qual Tsipras lavaria as mãos. Chamem-lhe estratégia, mas não é mais do que uma fraude
Deixo para outros o comentário às muitas implicações económicas, bancárias e negociais do anúncio do referendo na Grécia. Foco-me antes na dimensão política da opção de Tsipras, que é o aspecto essencial e que está na raiz de tudo o resto. E, falando com clareza, o que está na raiz do anunciado referendo (sim ou não ao acordo com os credores) é uma fraude democrática.
É fácil vender a ideia romântica de referendo como iniciativa exemplarmente democrática, em que ao povo é dada liberdade de opções e capacidade para decidir. Foi essa ilusão que Tsipras apresentou quando anunciou o referendo, elevando-se a si e ao seu partido como paladinos da democracia. Nada de novo. Por um lado, Tsipras sempre nos quis convencer do contra-senso de que liderava uma batalha pela democracia contra todos os 18 outros membros do Eurogrupo. Por outro, a esquerda é, por tradição, perita em vender ilusões perigosas em nome de valores que pretendemos universais, como a igualdade, a liberdade ou a justiça.
Só que a realidade é sempre bem diferente, muito mais cinzenta e muito menos democrática. Com Tsipras, não foi excepção: o único propósito do referendo é legitimar o projecto político do Syriza. Seja pela desejada ruptura com a zona Euro, ameaçando a legitimidade das instituições europeias. Seja pela cedência a um acordo com os credores, do qual Tsipras e Varoufakis lavariam as mãos de responsabilidades. Chamem-lhe estratégia política, se quiserem. Mas, no fundo, não é mais do que a instrumentalização do povo grego. E é, por uma série de razões, uma fraude de todo o tamanho.
O programa de assistência termina amanhã, terça-feira. Nesse dia, acaba-se tudo, a começar pela paciência e o dinheiro. Convocar um referendo para dia 5 de Julho, domingo, é portanto uma intrujice, visto tudo já estar (na prática) decidido. A ruptura com as instituições internacionais está em marcha, os bancos estão encerrados e a Grécia vive à beira da bancarrota. Durante o fim-de-semana, as filas nos multibancos, supermercados e estações de abastecimento de combustível dominaram as paisagens gregas. Até domingo, após seis meses de destruição da situação financeira da Grécia, o que fica realmente para referendar?
Obviamente, muito pouco. É por isso que o referendo representa uma tentativa inaceitável de desresponsabilização de Tsipras e Syriza perante as decisões negociais que tomaram e que pioraram dramaticamente a situação da Grécia nos últimos meses. E que, agora, muito provavelmente conduzirão o país a uma catástrofe. Encurralado entre promessas eleitorais que nunca poderia cumprir (o referendo é um reconhecimento indirecto dessa incapacidade) e a iminente saída da zona Euro caso não alcançasse acordo com os credores, o Syriza (e Tsipras em particular) decidiu ilibar-se de responsabilidades. É de uma cobardia inqualificável. Mas é também a única forma de o Syriza assistir ao descalabro da Grécia sem contrariar o seu próprio discurso e uma última tentativa de legitimar o seu plano de ruptura com o Euro. Tsipras já só tem a ganhar, os gregos ainda têm muito a perder.
A fraude não é só táctica, é também institucional. Um referendo visa sondar a vontade popular sobre uma determinada matéria, o que requer tempo, clareza entre as opções, debate público participado e um esclarecimento da população sobre o que está em causa em ambos os lados. Ora, quem convoca um referendo assim, de uma semana para a outra, não está interessado no esclarecimento da população – apenas na sua manipulação. É inimaginável que os gregos pudessem, daqui a uma semana, decidir conscientemente sobre uma matéria de tal modo complexa que tem justificado o arrastar de negociações durante meses. Tal como é inimaginável que conheçam bem as consequências das suas escolhas, em particular sobre a sua permanência no Euro (se soubessem não tinham votado no Syriza). Aliás, há consequências do referendo que nem sequer são perceptíveis: se o “sim” ao acordo com os credores ganhar, que proposta é realmente aplicada, e até que ponto um governo Syriza a quererá e irá aplicar? Desculpem, mas um referendo não é isto.
Enfim, parece que estamos perto do fim deste episódio que tem tudo para ser trágico. Podemos lamentar o desfecho. Podemos ainda ter esperança que, realizando-se o referendo, este sirva para passar uma mensagem de rejeição às opções do Syriza e que, eventualmente, isso force eleições antecipadas, das quais Tsipras não saia vencedor. Ou, dito de outro modo, podemos ter esperança de que ainda há esperança.
O que não podemos é fingirmo-nos surpreendidos, até porque a fraude democrática do Syriza não data deste anúncio de referendo. Começou muito antes, ainda na campanha eleitoral, quando Tsipras se propôs romper com as chamadas políticas de austeridade e, apesar disso, manter a Grécia no Euro financiada pelos credores. E continuou durante meses, entre visitas à Rússia e ameaças às instituições internacionais. O Syriza foi, desde o início, um projecto político cuja ambição revolucionária consistiu na ruptura, leia-se estatelar-se a toda a velocidade contra a parede. Está a conseguir, e só não anteviu quem não quis. Infelizmente, nos jornais e na nossa esquerda política, foram muitos os que fecharam os olhos. Pior ainda, foram muitos os que aplaudiram.

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