Onde estava no 12 de Junho?

Rui Ramos
Observador 12/6/2015, 9:36

É um dos paradoxos da democracia portuguesa: das duas maiores decisões do regime, a descolonização e a integração europeia, nenhuma foi matéria de referendo, mas tão-só de fatalismo histórico.
A pergunta é, numa rábula conhecida, ritualmente feita acerca do 25 de Abril. Mas a menos que o inquirido estivesse entre os oficiais do MFA, a resposta até pode lisonjear a sua vaidade cívica, mas é irrelevante para a história. O 25 de Abril foi uma revolução, em que só os revolucionários contaram. O mesmo, porém, não deveria ser verdade para 12 de Junho de 1985, data da assinatura do tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE). Há trinta anos, vivíamos em democracia. Devíamos ter contado todos. Mas não contámos, pelo menos directamente. O 12 de Junho não foi um referendo. Apenas uma “assinatura”.
Não porque o regime tivesse menorizado o momento. Pelo contrário: em toda a história democrática, poucos eventos mereceram uma encenação tão pomposa, com a nova oligarquia democrática a ocupar o mosteiro dos Jerónimos, como os navegantes de uns novos Descobrimentos. O caminho da Europa substituía o caminho da Índia. Porque é que o país só teve o direito de assistir pela televisão  a uma cerimónia diplomática para “altas individualidades”? Numa democracia, não deveriam ter sido convocados os cidadãos para sufragar a decisão, antes das canetas riscarem o papel?
É verdade: a maioria dos eleitores votara sempre nos partidos que tinham promovido a causa da adesão: 76% nas eleições de 1983. Mas em nenhuma eleição a adesão à CEE fora a questão principal. A oligarquia decidiu, desde cedo, tratar a adesão como uma fatalidade. Portugal não tinha escolha, se queria sobreviver e prosperar. A democracia perfilhou assim uma maneira velha de lidar com as grandes opções nacionais. A ditadura salazarista fizera o mesmo com o “ultramar”. Sem Angola, não havia vida para Portugal. Agora, a CEE substituía Angola. O raciocínio era o mesmo. A “Europa” era a terra prometida de um povo a quem as fronteiras de uma velha independência não bastavam para a salvação. Depois da Índia, do Brasil e da África, era a vez da Europa.
E também é verdade: havia uma dose de fatalidade nesta história. A adesão à CEE vinha de longe – mais longe do que a mitologia democrática quis reconhecer, ao fazer começar a história apenas com o pedido formal de 1977. Podia-se recuar a 1960, até à adesão de Portugal à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), ou mesmo a 1948, aquando da filiação portuguesa na Organização para a Cooperação Económica na Europa (OEEC). A ditadura salazarista tentara sempre combinar as suas opções coloniais e anti-democráticas com o acompanhamento da integração económica europeia. Na década de 1960, a inserção na Europa – através do comércio livre, mas também da emigração e do turismo – transformou profundamente o país. Em 1975, os oficiais do MFA que sonhavam com uma Cuba europeia tiveram de se resignar: Portugal estava demasiado enraizado no Ocidente para permitir novas aventuras luso-tropicalistas, agora em versão guevarista. Parecia demasiado tarde para haver escolha.  
Onde esteve então o problema? Nisto: não apenas Portugal, mas também a “Europa” ia mudar. Em 12 de Junho de 1985, a República Portuguesa aderiu à CEE. Oito anos depois, a CEE já não existia, substituída pela União Europeia do Tratado de Maastricht. Mais: a Europa de 1985 também já não existia. O colapso do comunismo europeu e a “globalização” transformaram os mapas e abriram as fronteiras. Portugal, que esperava deslocalizações industriais a seu favor, foi subitamente confrontado com concorrentes inesperados, da China à República Checa. A classe dirigente da democracia portuguesa decidiu então mergulhar o país na parte mais funda da piscina. Era preciso, a todo o custo, manter Portugal no “pelotão da frente” da integração. Mercado único, moeda única — tudo foi tratado como matéria de urgência e de consenso.
Houve sempre velhos do Restelo. Mas nunca em número suficiente para sujeitar o “processo europeu” ao teste da vontade popular. É um dos paradoxos da democracia: das duas maiores decisões do regime, a descolonização e a europeização, nenhuma foi referendada. No caso da integração europeia, além do fatalismo histórico, havia outro pormenor a desaconselhar a consulta: as opiniões sobre o “projecto europeu” pareceram sempre demasiado circunstanciais. Quando havia subsídios, os portugueses gostavam da “Europa”. Quando havia cortes, não gostavam. Nunca pareceu possível discutir a integração em termos do que o país queria ser, mas apenas em termos do que tinha a ganhar. Foi menos uma questão ontológica do que contabilística.
A Europa mudou. Portugal também. Em 1985, os portugueses eram ainda uma população jovem numa economia agro-industrial. Trinta anos depois, formam uma população envelhecida numa economia de serviços. A integração europeia enquadrou esta metamorfose. É costume agora lamentar as oportunidades perdidas, e os erros de trajectória. Mas uma coisa que foi feita com um espírito de fatalidade terá provavelmente de ser prosseguida com o mesmo espírito. Até certo ponto. Porque um dia, a história mudará outra vez. Também é fatal.

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