Só os amigos são dignos de inveja

JOÃO TABORDA DA GAMA | DN 2015.06.25

Ia ali a passar numa rua de Ponta Delgada quando me lembrei das primeiras vezes em que senti inveja de um grande amigo. E sobretudo de como é bom sentir inveja de um grande amigo. Só os amigos são dignos de inveja. Sobretudo quando ficam com a miúda mais gira da discoteca micaelense, uma das miúdas mais bonitas que já vi, quando tínhamos 17 anos, ela talvez menos, talvez mais, os olhos, os lábios permanecem. Nos Açores, que é o sítio mais bonito do mundo, e isto é um facto, é ainda mais tramado perder a miúda mais bonita do mundo, e isto é outro facto, para um dos melhores amigos do mundo, e isto é outro facto. Mas tudo isto mais ou menos voltou a acontecer há poucos dias. Já lá vou.
Há várias maneiras de se arranjar amigos, a melhor delas é passar muito tempo com eles. Esta é a forma de amizade mais pura. Amizade que ambos já não sabemos porquê, apenas porque o tempo tolerou que passássemos muito tempo juntos. Acontece mais na tenrura da idade, os dias são maiores, e a unidade de medida é a semana, ou a féria-de-verão. São os amigos-família, aqueles que ninguém escolheu, que estavam por ali e por ali andarem ficaram. É uma forma pura de amizade porque é desinteressada, até por vezes desinteressante. Somos um casal habituado pelo amor, pouco interrompido pela paixão.
Mais tarde na vida chegam outros amigos, os da faculdade, os da empresa, os amigos dos cônjuges e os cônjuges dos amigos, fenómeno aditivo e incremental. Os amigos que chegam nesta altura é coisa mais forte, porque é mais rápida, e é mais interesseira, não tão pura como o Gonçalo que se repetia nas férias em São Martinho (alerta de ficção, nunca estive em São Martinho). Estes amigos não se fazem no café, mas nas trincheiras da vida. Uma conta-corrente de problemas e soluções, desenrascanços, um infinito trabalho de grupo geram uma amizade-canivete suíço. Há tempo envolvido, há, mas é em contexto adulto, ou seja, na guerra. Como o Liedson, resolvem. E estes amigos, os amigos da guerra, tendem a não se dar com os amigos da terra. A coisa quebra no primeiro ano de faculdade, e requebra no primeiro ano de emprego, na saída para o estrangeiro, naquele Erasmus. A malta do bairro, a malta do Bairro, a malta da Barros e a malta de Barça, não se misturam muito.
Por falar em misturas, a mistura mais imprevisível é a de filhos de pais amigos. Farto-me de avisar os meus grandes amigos de que a probabilidade de os nossos filhos serem amigos como nós somos é zero, e que já é bom que se falem e respeitem. Está tudo em denial, que vai correr tudo bem, vai ser tudo amiguinho à quinta geração e nós velhinhos, a ver, tão queridos, estás a ver, eu não te dizia. Não vai acontecer. A maior parte dos filhos dos amigos dos pais ganha uma sarna aos 13, 14 anos, é uma regra simples que qualquer criança sabe. Os amigos dos filhos dos amigos dos pais é outra coisa, e esses podem justificar a existência dos sarnentos por perto, mas sempre como meio a usar e não fim a amar.
Das várias vantagens em ter amigos, uma das maiores delas é poder ter inveja deles. Só os amigos são dignos de inveja.
A gente não vai ter inveja de um desconhecido, ou de um inimigo. Tenho inveja de não jogar à bola como o Cristiano Ronaldo? Zero. Mas se um amigo meu, marrão, com barriga, que não pratica desporto, com óculos e olheiras, for um ás da bola, posso pensar nisso. É um exemplo mau, porque bola não me interessa nada.
O exemplo que eu quero dar tem que ver com coisas importantes: puré de batata. É a história de há poucos dias. É sobre um amigo meu, que agora anda na vida de mudar o mundo, que nunca teve como profissão estar aos fornos, pelo menos no sentido hoteleiro do termo, e que consegue fazer o puré de batata do Joel Robuchon de forma perfeita. Este puré de batata é especial, com vários passes técnicos para o tornarem diferente, as batatas não são quaisquer umas (um dos sinais do atraso de Portugal é as batatas não serem vendidas por tipo, mas por utilização, para cozer, para assar, numa espécie de linguagem simplificada a um povo primitivo que acedeu agora à magia de usar o fugo para transformar o alimento), a manteiga tem de ser um quarto da quantidade de batatas, e estar bem fria, e o puré deve ser seco antes de se juntar à manteiga e ao leite.
A receita está por todo o lado, é googlar purée e robuchon. O que não está por todo o lado é gente que a saiba fazer. Tudo na cozinha tem um ponto, e há um ponto em que este puré deixa de ser mágico para estarmos a comer pacotes de manteiga UCAL à colher. Mas depois há um cabrão de um amigo que acerta no ponto, sem avisar, sem erro. E isso não se faz aos amigos. Ao A. e ao M.

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