Eu culpo François Hollande

Rui Ramos
Observador 14/7/2015

Quem redigiu o novo guião de austeridade de Tsipras não foi a Alemanha: foi a França. Deixem portanto Merkel e Schauble em paz. Se querem um culpado, olhem para François Hollande: "a Europa é ele".
Ainda vale a pena bater no Syriza? Ontem, Tsipras prontificou-se a aprovar em menos de 48 horas todos os cortes e todas as liberalizações a que os seus antecessores da direita e da esquerda moderada resistiram durante cinco anos. Sim, o mundo é um pouco mais complexo do que parecia no bar da faculdade. Quem é que esperava ver a austeridade convertida na melhor opção da esquerda radical? Os radicais tinham razão: é mesmo uma “ideia perigosa” — parece que se pega.
As viúvas do Syriza têm uma explicação simples para este milagre digno da estrada de Damasco: foi tudo uma vingança alemã. Com o devido respeito, não me parece: a Alemanha, segundo constou, não desejava mais austeridade para a Grécia. Preferia, sem ilusões, deixá-la seguir o seu caminho de plena soberania, com a ajuda de um programa humanitário. Quem redigiu o novo guião de austeridade de Tsipras não foi a Alemanha: foi a França. Deixem portanto Merkel e Schauble em paz. Se querem um culpado, olhem para François Hollande. O presidente francês, aliás, confessou tudo na sua monárquica conferência de imprensa da manhã de segunda-feira: “Na Alemanha, havia uma grande pressão para a saída da Grécia. Mas eu recusei essa opção”. Uma fonte governamental francesa foi ainda mais clara no Le Monde: “A Europa é ele”. Luís XIV só dizia isso do Estado em França. Os seus sucessores republicanos, muito mais soberbos, já o dizem de todo o continente.  
Há três anos, Hollande foi, com a sua conversa de “crescimento”, o primeiro D. Sebastião dos inimigos da austeridade. Mas a austeridade é ele. Em França, através do ministro Macron. Na Grécia, por meio de Tsipras. E isto é assim, não porque Hollande pretenda liberalizar a França ou a Grécia, mas porque há muito tempo – desde François Mitterrand — que os políticos franceses resolveram sacrificar tudo e todos à sua ideia de capturar o poder económico alemão através de uma união monetária à escala continental. Jamais a França quis reconhecer que a moeda única deveria resultar da convergência das economias e das instituições. Jamais a França poderia admitir que o euro era reversível. Por isso, a Grécia entrou no euro, e por isso a Grécia não saiu agora. Para os políticos franceses, o euro é uma questão política, que diz sobretudo respeito ao equilíbrio de poderes na Europa ocidental. Mas é também o seu meio, através das transferências do BCE, para protegerem a França das mudanças a que estaria sujeita no mundo da globalização.
O projecto francês assenta, em primeiro lugar, no velho complexo de culpa da Alemanha. Mas o euro tem também uma base social. Sem isso, os devaneios de poder parisienses não iriam longe. Em países como a Grécia, só o regime do euro pode manter uma moeda forte que embaratece as importações e defende pensões e poupanças contra as desvalorizações monetárias. Por isso, muita gente na Grécia está disposta a aguentar, até certo ponto, as taxas e os impostos necessários para equilibrar as contas, se a alternativa for a saída do euro. Mas não esteve, até agora, pronta para sustentar liberalizações ou a debater o papel do Estado. Ora, o aperto fiscal sem reformas estruturais, que é aquilo que temos tido no sul da Europa, é de facto uma armadilha. Beneficia aforradores e (apesar dos cortes) também os pensionistas, mas à custa de todos aqueles a quem os impostos e as regulamentações tiram recursos e oportunidades. Nestes termos, é a receita de uma longa decadência.
Pior ainda: devido à relutância de todos os políticos em assumir a disciplina e o ajustamento do euro, estes aparecem sempre como uma imposição do exterior. A “pressão de Bruxelas” é um jogo de que os governos gostam, porque é uma boa desculpa quando confrontados com clientelas e eleitores desiludidos. Mas este jogo presta-se facilmente à manipulação de demagogos como Tsipras, sempre prontos para contestar a classe política estabelecida em nome da “soberania”, da “democracia” e do “Estado social” — mesmo que seja apenas para, uma vez no poder, fazerem exactamente como os seus antecessores, ou até pior.
O resultado é uma espécie de morte da política: o voto deixa de ter consequências, e a governação passa a ser regulada por noitadas em Bruxelas. É significativo que seja agora Tsipras, um esquerdista radical, o agente incumbido de liberalizar a Grécia: nada podia ser mais indicativo da falta de convicção ideológica e da ausência de apoio social com que estas reformas vão ser supostamente executadas. Alguém acredita? O Syriza ameaça desfazer-se e o líder da extrema-direita Panos Kammenos, que Tsipras levou ao poder, já se candidatou ao lugar vago de chefe da resistência à austeridade. Até ser a vez dele de assinar um acordo em Bruxelas. Não se levantem dos lugares, porque o filme continua.

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