O capital móvel e a capital do móvel

JOÃO TABORDA DA GAMA | DN 2015.07.16

A fuga de "El Chapo" da prisão no México apanhou grande parte do mundo de surpresa. Como foi possível que alguém que já tinha fugido da prisão, agora encarcerado com máxima segurança, com câmaras e tudo, voltasse a fazê-lo? Outra maneira de olhar para a coisa era partir do princípio de que "El Chapo", o maior narcotraficante vivo, ia voltar a fugir. Se a maioria do mundo tivesse achado que assim que pudesse "o baixote" se ia enfiar por um túnel abaixo e nunca mais aparecer, talvez a vigilância tivesse sido maior, ou, quem sabe, o plano de recaptura tivesse sido montado de um modo mais eficiente. Mas admitir que "El Chapo" fugiria era o que ninguém queria ou podia admitir. Era admitir falhas do sistema que o prendeu, e os sistemas são avessos à inclusão das suas falhas na sua bula.
Toda a gente sabe que a Grécia não vai conseguir pagar a dívida que tem. Sabem os gregos, sabem os credores, sabem as instituições, sabem os mercados, sabe o Schäuble e o Hollande. É natural que a dívida portuguesa, mais lá para a frente, também precise de uns ajustes. E a espanhola. E a italiana. Mas ninguém quer falar disto. Porquê? Uma mistura de o sistema de dívidas públicas ter sido construído com base numa improbabilidade de default com a teoria político-económica do NVCA (Não Vamos Chamar o Azar). Quanto a este segundo ponto, recomendo uma ida do Eurogrupo ao bruxo de Fafe.
Quanto ao segundo: a inevitabilidade de reestruturação das dívidas europeias não é um problema em si. A existência de crédito implica sempre a possibilidade de incumprimento - o direito das obrigações também tem o seu o yin-yang. É portanto natural a existência de formas de mitigar esse possível incumprimento, sejam regras sobre a renegociação da dívida, ou regras quanto à falência do devedor. O que no quadro europeu é um problema é a inexistência de regras procedimentais e políticas sobre como se levam a cabo eventuais reestruturações ou falências.
Por que regras se vai reger o primeiro-ministro português (ou italiano, ou outro) quando daqui por uns meses tiver de dispor de milhões de euros dos contribuintes portugueses (ou italianos, ou outros) na renegociação da dívida grega? Ninguém sabe porque não existem. E era bom que existissem essas regras. Por duas razões: primeiro porque a mera existência de regras ditaria a maior legitimidade política das reestruturações de dívidas. Depois porque para que tais regras existissem ter-se-ia de abrir um debate desassombrado sobre a reestruturação de dívidas públicas no espaço europeu. Obrigaria a pensar em soluções técnicas e institucionais. Faria sentido um Fundo Monetário Europeu, como há pouco Passos Coelho propôs (sem grande apoio dos grandes)?
E esse debate, mais do que o debate dos resgates, seria um debate construtivo sobre as fraquezas da Europa. Claro que é um debate que apenas devemos ter depois da resposta à questão fundamental de saber se a nossa Europa é uma Europa que admite Estados falhados. Porque se quisermos uma Europa em que o pior da turma sai todos os anos, então não é preciso regras para nada, nem para isso. A Grécia sai, e pronto. O drama da Grécia é que ninguém quer que ela saia, sobretudo os gregos, que seriam trucidados por uma desvalorização monetária capaz de incendiar uma guerra civil. E mesmo que os gregos quisessem sair, a Europa devia obrigar a velhinha a atravessar a rua, tal a sua importância geoestratégica.
E Portugal? Portugal, tendo aplicado austeras medidas de responsabilidade financeira, está melhor do que a Grécia: não apenas o ponto de partida era melhor, como se credibilizou perante os credores. Naturalmente que no médio prazo será preciso acelerar o crescimento para trazer a dívida para níveis sustentáveis, e isso será apenas possível com uma renegociação (ou petróleo no Beato). Mas essa conversa, a conversa da renegociação, já vai ser tida num contexto negocial em que Portugal está mais forte do que a Grécia. E desejavelmente já existirá um quadro jurídico e político prévio que determine as regras que se aplicam quando um Estado não tem dinheiro para pagar.
E Paços de Ferreira? Até há poucos meses em Portugal acreditava-se que as empresas municipais tinham dinheiro infinito. Ou melhor, sabia-se que tinham dívidas infinitas, mas acreditava-se que o município pagaria sempre, e, se este não pudesse ou quisesse, o Estado lá pagaria. Ninguém ousava juntar na mesma frase falência e "empresa municipal", mais uma vez um misto de argumentos jurídicos e a teoria do NVCA. Até que um tribunal do Norte decretou a falência da empresa municipal Paços de Ferreira Invest. E os credores ficaram com 30 milhões a arder. Foi a capital do móvel a pregar uma grande lição ao capital, a mostrar que o melhor capitalismo implica perdas. Como a melhor prisão implica fugas. Mais vale falar disso.

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