A minha primeira idade do armário

Inês Teotónio Pereira, ionline 2015.08.22
O meu filho acha que as injustiças do mundo podem e vão acabar quando ele tiver um papel relevante 
no mundo e possa pôr em prática as letras das músicas dos Pink Floyd, Supertramp e AC/DC
Este é um grande mês. Em Agosto de 2015, um dos meus filhos chegou à idade mais importante de todas: ele acha que o mundo está todo errado e que só ele e dois ou três amigos mais um personagem de uma série da FOX é que sabem toda a verdade. É a idade do armário, durante a qual, segundo a minha avozinha, “se fecham as crianças no armário e só as vamos buscar quando passar”. Ansiava por isto há anos. 
É assim: este meu filho está farto de cinismos. Acha que as injustiças do mundo podem e vão acabar quando lhe for dada a oportunidade de ter um papel relevante no mundo e pôr em prática as letras das músicas dos Pink Floyd, Supertramp e até dos AC/DC. Bandas que ele descobriu. Só ele. Ele também descobriu que os pais, a religião, os políticos e os professores não estão a ver bem as coisas. Já viram, um dia, talvez. Mas agora chegou a vez dele. Ele sabe, sente, quer fazer e descobriu como. Ele é genial, sensível e não quer perder tempo com aulas chatas, com regras parvas, com irmãos mais novos e com lições de moral. Já aprendeu tudo. Foram anos que passou calado a ouvir e a aprender. Reprimido, entre a sopa, os TPC e as horas de ir para a cama. Sem voto, mas com muita matéria. Chega. De que serviu tudo isto se ainda há desigualdades no mundo, fome e guerra, doenças e racismo, enquanto ele dorme sossegado no aconchego e no conforto da sua cama? Não é justo. Assim como não é justo o leão Cecil, a guerra na Síria, o Holocausto, a Inquisição, o racismo nos EUA, etc. 
Foi agora, em Agosto de 2015, que o meu menino deu o grito. Ao som da sua viola desafinada, na solidão do seu quarto desarrumado, sentiu-se só, incompreendido e subestimado. Ele quer salvar-se salvando o mundo. Ele pergunta porque é que o primeiro-ministro vai à praia com câmaras de televisão atrás e um outro qualquer banhista desconhecido não tem o mesmo privilégio. O que é que o PM é mais do que outro qualquer banhista? Quem são os jornalistas para definirem quem é mais importante? Porque é que os presos famosos aparecem na televisão e os outros não? Ele pergunta porque é que há touros a sofrer, cães abandonados, praias sujas, peixes mortos, lixo não separado, pobres na rua. Ele recusa roupa de marca porque não é fútil e a roupa de marca é para quem não levanta questões morais. Também não quer regras, quer ser livre. Quer alugar um “pão de forma” e fazer a costa alentejana sem nunca lavar a roupa. Para quê lavar a roupa se ela se vai sujar outra vez? Para quê fazer a cama se a vamos desmanchar outra vez? Para quê lavar a loiça, engraxar os sapatos, tomar banho de banheira quando se tomou banho de mar, meu Deus? Ver as estrelas, tocar guitarra e ondas. Diz que lhe chegava. 
Em Agosto de 2015, o meu menino deixou de me dar beijinhos em público. Não quer abraços se estiver alguém a ver e muito menos quer andar com os irmãos e os pais em cortejo familiar. Ele é único, não se mistura, não vai em grupos. Responde sempre. Nunca deixa nada por dizer porque é honesto, sincero, frontal e não tem medo da verdade. Provoca sem levantar o tom de voz. É sorna. Resiste a ordens que não lhe fazem sentido e está a apurar o seu sentido de justiça dia a dia. Sem critério, é claro. Passo os dias a discutir com ele. Ele questiona o que para mim é há anos inquestionável. Pensamos juntos, argumentamos juntos e acabamos quase sempre de acordo e os dois mais esclarecidos. Só me irrito quando ele teima, não ouve ou é irreverente só pelo prazer de o ser. Ou seja, quase sempre. Sobre religião, ainda não resolveu a questão de Sodoma ou das pragas do Egipto. Mas vai tentando perceber as metáforas. Pelo meu lado, vou insistindo no Novo Testamento. 
Quando os meus filhos eram bebés, diziam-me para eu aproveitar bem essa altura porque ia ter muitas saudades daquelas idades. Ainda não tive, mas acho que vou ter saudades desta idade: tão verdadeira que chega a ser tola. Tenho muita sorte, ainda tenho mais cinco idades do armário para viver. 

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